Prof. Mário
Bastos[1]
“A Filosofia começa com um estado de inquietação e
de perplexidade, para culminar numa atitude crítica diante do real e da vida.”
Miguel Reale.
Objetivo este
que - no entendimento de Reale[i] -,
não seria outro que não a busca dos princípios através do instrumento da
faculdade da razão o que revelaria uma relação inerente e aparentemente
indissociável da Filosofia com aquilo que se entende por universalidade.
A relação com universalidade
- escopo que vem ampliado sua presença nas ciências sociais e humanas com
bastante vigor desde a primeira metade do século XX -, conforme referida,
revela uma relação ainda mais profunda entre a Filosofia e o Direito, do que a
que se asseverou incialmente haver entre aquela e as demais ciências.
Não deixa, todavia, tal relação – entre Direito e Filosofia - de se dar com menor tensão. A bem da verdade o que se observa é uma crescente precedência conferida ao tecnicismo jurídico e ao juspositivismo pelas estruturas vigentes do Estado e da Administração Pública, corroboradas por uma percepção unilateral da Sociedade Civil acerca do papel do Direito que em muito dilata e amplia essa tensão, desgastando uma relação que incialmente deveria se dar de maneira colaborativa.
Referindo-nos
mais uma vez ao princípio, o que importa esclarecer acerca do debate proposto
passa em verdade por uma relação bastante evidente da Filosofia com a produção
do conhecimento científico.
Em favor do viés
didático que aqui se pretende contemplar, cumpre-nos mais uma vez exaltar a
conhecida concepção histórica da origem da Filosofia. Voltemo-nos, assim, à
Pitágoras, o Samiano, autoproclamado primeiro grande amante da razão.
Como cunhado
pelo grande mestre do conhecimento, a Filosofia é o profundo amor pela
sabedoria. O Filósofo não aquele que é senhor da sabedoria. Sua função é
utilizar da faculdade da razão para questionar o mundo em busca de respostas,
sabendo, contudo, que as perguntas certas são sempre mais relevantes do que
qualquer verdade que se possa esperar produzir.
Por isso homens
como Pitágoras, é dito, rejeitavam o adjetivo de sábio em favor de outro que
cunharam para se definir: amantes da razão.
O método
cartesiano[ii]
se afirmou com o grande paradigma histórico de formação do pensamento
científico, todavia o mesmo privilegia a via epistemológica. Muito por conta do
sucesso prático dessa via na produção do conhecimento técnico - principalmente
nos campos do conhecimento comumente classificados como ciências biológicas,
naturais ou exatas - ao longo dos séculos XIX e XX, o método cartesiano assumiu
um patamar equiparável ao da fé religiosa no período medieval. Uma verdade
incontestável, ou, um método definitivo de produção de verdades absolutas.
A Filosofia se
preocupa em nos revelar que tal entendimento além de tecnicamente equivocado
pode nos conduzir a uma nociva produção unilateral do conhecimento. Isto porque
para aqueles que amam a razão cabe a árdua tarefa de questionar incessantemente
toda e qualquer verdade. Ante o papel central que o conhecimento epistemológico
e técnico assumiu nas sociedades contemporâneas a Filosofia se imbuiu de um
viés crítico, simplesmente pelo fato de ser fiel a seu objeto essencial e muito
menos por uma opção de seus operadores.
Em suma, ao
passo que a Filosofia não cedeu absolutamente ao império do tecnicismo assumiu
um posto natural de crítica do sistema que se estabelecera. E é exatamente a
partir dessa dinâmica que se entabulou que nos parece adequado tratar da
relação entre a Filosofia e uma outra ciência que ocupa também posição crucial
para a humanidade, qual seja, o Direito.
Como na
oportunidade não nos cabe aqui analisar ou justificar os motivos que
garantiriam ao Direito posição de tamanha importância, pedimos vênia para que
tanto seja aceito como um pressuposto evocado mais uma vez para fins didáticos,
dentro do universo desse artigo. Assim sendo, prossigamos em direção à relação
aforada, que é aquilo que melhor nos serve.
Retornando à
Filosofia - e mais uma vez lançando mão de nosso viés didático -, cabe o
registro breve acerca das subáreas temáticas da produção do conhecimento
filosófico por conta do viés da forma de análise e das próprias caraterísticas
dos problemas analisados.
Assim podemos
citar como subáreas já classicamente reconhecidas a metafísica, a lógica, a
epistemologia, a ética, a estética e mais recentemente a pragmática, a
filosofia analítica e a filosofia da linguagem.
Ao passo que é
importante frisar que não há uma subárea da filosofia que se debruce sobre o
estudo do direito. Conforme bem lembra Reale a “Filosofia do Direito” não é
tampouco disciplina jurídica[iii].
Trata-se simplesmente da produção do conhecimento científico acerca de
determinado objeto de estudo – no caso, o Direito em seus mais diversos
aspectos – imbuída do escopo e viés crítico, este assumido naturalmente pela
Filosofia ao longo do desenvolvimento do conhecimento humano.
É sabido que a
busca pela verdade é elemento bastante coincidente entre a Filosofia e o
Direito. Mas não é este aspecto que buscamos aqui debater. O que se pretende é
evidenciar a relação entre Filosofia e Direito a partir de suas estruturas de
pensamento e consequentemente como aquela interfere - ou ao menos deveria interferir
- na produção do conhecimento jurídico[iv].
Portanto, quando
se fala em Filosofia do Direito, o que se tem em mente, objetivamente, é o
exercício da capacidade do uso da faculdade da razão do homem quando aplicada à
análise crítica da complexa rede de relações que se estabelece entre
indivíduos, Estado e de ambos com o ordenamento jurídico, bem como da estrutura
e essência deste último. Mais ainda, é a árdua tarefa de se pensar o Direito em
seus princípios, desde sua origem até suas repercussões contemporâneas,
ponderando aí as adequações devidas que devem - ou deveriam - se dar, entre forma
e substância[v].
Não se trata
aqui de mero esforço acadêmico para defender um papel que pode ser considerado
pela ampla maioria dos profissionais de direito como impraticável ou mesmo
inútil. Em verdade tal entendimento é fruto justamente do avanço do apego ao
tecnicismo jurídico e da análise das estruturas em detrimento da compreensão
aos princípios, e dos aspectos que fundamentam os mesmos, em suas medidas
históricas e até mesmo pragmáticas.
O apego à forma
em detrimento da substância vem produzindo um Direito cada vez mais apartado
dos princípios e, por consequência, das vontades e interesses daqueles que
legitimam a norma posta. A norma positivada se torna o real soberano em
detrimento das consciências humanas. O resultado é um sistema fechado em si,
averso ao exercício da faculdade da razão e que prioriza a auto-sustenção[vi].
É preciso que se
atente e se reveja a doutrina do apego exclusivo à excelência do domínio da
técnica normativa instrumentalizada em detrimento de outros aspectos
substanciais do conhecimento jurídico ora cultivada pela larga maioria dos
operadores e acadêmicos do Direito.
Deve-se, sim,
imbuir-se daquele estado de inquietação e perplexidade perene da Filosofia em
relação ao Direito, prestar-lhe, pois, a devida reverência exigida por meio do adequado
uso da faculdade da razão e assim, e apenas então, amar o Direito em seu
aspecto de conhecimento.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, N.. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: UNB, 2004.
______.Liberalismo e democracia. Brasiliense: São Paulo. 2000.
______.Teoria da norma jurídica. EDIPRO: Bauru. 2001.
______.Direito e estado no pensamento de Kant. Mandarim: São Paulo. 2000.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2003.
FURET, François & Ozouf, Mona- Dicionário crítico da Revolução Francesa.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1989.
HABERMAS, J. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Vol. 01. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1997.
______. Comentários sobre verdade e justificação. In: SAVIDAN, P. (Org.). A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______.Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
DESCARTES, R. Discurso do Método. Martins Fontes: São Paulo, 2001.
PINZANI, A. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009.
REALE, M. Filosofia do Direito, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
[1] Prof.
Mário Basto é Advogado, Especialista em Direito Tributário (UFBa) e Aluno Especial
do Mestrado em Filosofia da UFBa. Professor do Curso de Direito da Faculdade
APOIO UNIFASS.
[i] “Quando se afirma que Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o
que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual
progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de
outros juízos integrados em um sistema de compreensão total. Assim, o sentido
de universalidade revela-se
inseparável da Filosofia.”. REALE, M. Filosofia
do Direito, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000. p.07.
[ii] Não por acaso coube a
Descartes, um dos grandes filósofos da humanidade, desenvolver o mais método
científico da história da humanidade no que tange à investigação
epistemológica. Descartes, como filósofo, se considerava, exatamente com
Pitágoras, um amante da razão. Seu projeto filosófico, acima de tudo, passava
pelo esforço de comprovação da existência divina por meio de processo
científicos; processos esses que necessitavam de uma sistemática própria e
passível de reprodução por outros em circunstâncias similares, para assim se
definir um patamar mínimo, abrangente e ótimo de validade para argumentos.
Assim é o método científico. O curioso era que Descartes era acima de tudo um
filósofo, e assim sendo, entendia que não deveria ser escravo de método, mas sim
que o método deveria ser apenas um meio para se validar uma estrutura
argumentativa perante uma comunidade acadêmica ampla. Ironicamente aqueles que
seguiram ao longo do tempo o método de Descartes esqueceram do papel do método
como instrumento e lhe atribuíram posição substantiva. A produção do
conhecimento, assim, passou a ficar restrita às “verdades” produzidas pelo
método, quando não se pode olvidar da necessidade frequente de se questionar
qualquer parâmetro de verdade. Tanto apenas é possível pela motivação da
inquietação constante que advém do ânimo filosófico, ou seja, da capacidade de
se usar a faculdade da razão para se pensar o próprio conhecimento.
[iii] “Ora, a Filosofia do Direito, esclareça-se desde logo, não é disciplina
jurídica, mas é a própria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de
realidade, que é a ‘realidade jurídica’. Nem mesmo se pode afirmar que seja
Filosofia especial, porque é a Filosofia, na sua totalidade, na medida em que
se preocupa com algo que possui valor universal, a experiência histórica e
social do direito”. REALE, M.Op. cit. p. 09.
[iv] “Enquanto que o jurista constrói a sua ciência partindo de certos
pressupostos, que são fornecidos pela lei e pelos códigos, o filósofo do
direito converte em problema o que para
o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo. Quando o advogado
invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranqüilo, porque a lei
constitui ponto de partida seguro para o seu trabalho profissional; da mesma
forma, quando um juiz prolata a sua sentença e a apóia cuidadosamente em textos
legais, tem a certeza de estar cumprindo sua missão de ciência e de humanidade,
porquanto assenta a sua convicção em pontos ou em cânones que devem ser
reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do direito, ao contrário, converte
tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por que o juiz deve apoiar-se
na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o juiz a não se revoltar
contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está apreciando, uma
vez convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da lei vigente?
Por que a lei obriga? Como obriga? Quais os limites lógicos da obrigatoriedade
legal?” REALE, M. Op. cit. p.10
[v] “A missão da Filosofia do Direito é, portanto, de crítica da experiência
jurídica, no sentido de determinar as suas condições transcendentais, ou seja,
aquelas condições que servem de fundamento à experiência, tornando-a possível.
Que é que governa a vida jurídica? Que é que, logicamente, condiciona o
trabalho do jurista? Quais as bases da Ciência do Direito e quais os títulos
éticos da atividade do legislador? Eis aí exemplos da já apontada preocupação
de buscar os pressupostos, as condições últimas, procurando partir de verdades
evidentes, ou melhor, evidenciadas no processar-se da experiência
histórico-social.”. REALE, M. Op.
cit. p.10
[vi] "Uma consequência dessas considerações pode ser de grande
interesse em nosso contexto: na medida em que a "cultura" e as
"estruturas de personalidade" são carregadas de modo idealista,
também o direito, aliviado de seus fundamentos sagrados, passa a receber
pressão. O terceiro componente do mundo da vida, ou seja, a
"sociedade", enquanto totalidade das ordens legítimas, concentra-se,
conforme vimos, cada vez mais no sistema jurídico, na medida em que assume
funções de integração da sociedade em sua totalidade. As transformações
esboçadas nos outros dois componentes podem explicar por que as ordens modernas
do direito só podem ser legitimadas a partir de fontes que não o colocam em
contradição com as idéias de justiça e os ideais de vida pós-tradicionais que
se tornaram decisivos para a cultura e a conduta de vida. Argumentos em prol da
legitimidade do direito devem ser compatíveis com os princípios morais da
justiça e da solidariedade universal - sob pena de dissonâncias cognitivas -
bem como com os princípios éticos de uma conduta de vida auto-responsável,
projetada conscientemente, tanto de indivíduos, como de coletividades. Essas
idéias de autodeterminação e de auto-realização não se coadunam entre si com
facilidade. Por isso, as respostas do direito racional às modernas idéias de
justiça não tiveram o mesmo eco encontrado pelos ideais de vida."
HABERMAS, J. Direito e Democracia – entre
facticidade e validade. Vol. 01. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1997. p.
132-133.
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