quarta-feira, 7 de agosto de 2013

FILOSOFIA e DIREITO

Da necessária relação entre FILOSOFIA e DIREITO

Prof. Mário Bastos[1]

“A Filosofia começa com um estado de inquietação e de perplexidade, para culminar numa atitude crítica diante do real e da vida.”

Miguel Reale.

 A Filosofia, por suas próprias características e peculiaridades, se relaciona de maneira diferenciada com outras ciências. Não se trata de um privilégio, mas de um resultado natural e um de seus objetivos fundamentais.

Objetivo este que - no entendimento de Reale[i] -, não seria outro que não a busca dos princípios através do instrumento da faculdade da razão o que revelaria uma relação inerente e aparentemente indissociável da Filosofia com aquilo que se entende por universalidade.
A relação com universalidade - escopo que vem ampliado sua presença nas ciências sociais e humanas com bastante vigor desde a primeira metade do século XX -, conforme referida, revela uma relação ainda mais profunda entre a Filosofia e o Direito, do que a que se asseverou incialmente haver entre aquela e as demais ciências.

Não deixa, todavia, tal relação – entre Direito e Filosofia - de se dar com menor tensão. A bem da verdade o que se observa é uma crescente precedência conferida ao tecnicismo jurídico e ao juspositivismo pelas estruturas vigentes do Estado e da Administração Pública, corroboradas por uma percepção unilateral da Sociedade Civil acerca do papel do Direito que em muito dilata e amplia essa tensão, desgastando uma relação que incialmente deveria se dar de maneira colaborativa.

Referindo-nos mais uma vez ao princípio, o que importa esclarecer acerca do debate proposto passa em verdade por uma relação bastante evidente da Filosofia com a produção do conhecimento científico.

Em favor do viés didático que aqui se pretende contemplar, cumpre-nos mais uma vez exaltar a conhecida concepção histórica da origem da Filosofia. Voltemo-nos, assim, à Pitágoras, o Samiano, autoproclamado primeiro grande amante da razão.

Como cunhado pelo grande mestre do conhecimento, a Filosofia é o profundo amor pela sabedoria. O Filósofo não aquele que é senhor da sabedoria. Sua função é utilizar da faculdade da razão para questionar o mundo em busca de respostas, sabendo, contudo, que as perguntas certas são sempre mais relevantes do que qualquer verdade que se possa esperar produzir.

Por isso homens como Pitágoras, é dito, rejeitavam o adjetivo de sábio em favor de outro que cunharam para se definir: amantes da razão.

O método cartesiano[ii] se afirmou com o grande paradigma histórico de formação do pensamento científico, todavia o mesmo privilegia a via epistemológica. Muito por conta do sucesso prático dessa via na produção do conhecimento técnico - principalmente nos campos do conhecimento comumente classificados como ciências biológicas, naturais ou exatas - ao longo dos séculos XIX e XX, o método cartesiano assumiu um patamar equiparável ao da fé religiosa no período medieval. Uma verdade incontestável, ou, um método definitivo de produção de verdades absolutas.

A Filosofia se preocupa em nos revelar que tal entendimento além de tecnicamente equivocado pode nos conduzir a uma nociva produção unilateral do conhecimento. Isto porque para aqueles que amam a razão cabe a árdua tarefa de questionar incessantemente toda e qualquer verdade. Ante o papel central que o conhecimento epistemológico e técnico assumiu nas sociedades contemporâneas a Filosofia se imbuiu de um viés crítico, simplesmente pelo fato de ser fiel a seu objeto essencial e muito menos por uma opção de seus operadores.

Em suma, ao passo que a Filosofia não cedeu absolutamente ao império do tecnicismo assumiu um posto natural de crítica do sistema que se estabelecera. E é exatamente a partir dessa dinâmica que se entabulou que nos parece adequado tratar da relação entre a Filosofia e uma outra ciência que ocupa também posição crucial para a humanidade, qual seja, o Direito.

Como na oportunidade não nos cabe aqui analisar ou justificar os motivos que garantiriam ao Direito posição de tamanha importância, pedimos vênia para que tanto seja aceito como um pressuposto evocado mais uma vez para fins didáticos, dentro do universo desse artigo. Assim sendo, prossigamos em direção à relação aforada, que é aquilo que melhor nos serve.

Retornando à Filosofia - e mais uma vez lançando mão de nosso viés didático -, cabe o registro breve acerca das subáreas temáticas da produção do conhecimento filosófico por conta do viés da forma de análise e das próprias caraterísticas dos problemas analisados.

Assim podemos citar como subáreas já classicamente reconhecidas a metafísica, a lógica, a epistemologia, a ética, a estética e mais recentemente a pragmática, a filosofia analítica e a filosofia da linguagem.

Ao passo que é importante frisar que não há uma subárea da filosofia que se debruce sobre o estudo do direito. Conforme bem lembra Reale a “Filosofia do Direito” não é tampouco disciplina jurídica[iii]. Trata-se simplesmente da produção do conhecimento científico acerca de determinado objeto de estudo – no caso, o Direito em seus mais diversos aspectos – imbuída do escopo e viés crítico, este assumido naturalmente pela Filosofia ao longo do desenvolvimento do conhecimento humano.

É sabido que a busca pela verdade é elemento bastante coincidente entre a Filosofia e o Direito. Mas não é este aspecto que buscamos aqui debater. O que se pretende é evidenciar a relação entre Filosofia e Direito a partir de suas estruturas de pensamento e consequentemente como aquela interfere - ou ao menos deveria interferir - na produção do conhecimento jurídico[iv].

Portanto, quando se fala em Filosofia do Direito, o que se tem em mente, objetivamente, é o exercício da capacidade do uso da faculdade da razão do homem quando aplicada à análise crítica da complexa rede de relações que se estabelece entre indivíduos, Estado e de ambos com o ordenamento jurídico, bem como da estrutura e essência deste último. Mais ainda, é a árdua tarefa de se pensar o Direito em seus princípios, desde sua origem até suas repercussões contemporâneas, ponderando aí as adequações devidas que devem - ou deveriam - se dar, entre forma e substância[v].

Não se trata aqui de mero esforço acadêmico para defender um papel que pode ser considerado pela ampla maioria dos profissionais de direito como impraticável ou mesmo inútil. Em verdade tal entendimento é fruto justamente do avanço do apego ao tecnicismo jurídico e da análise das estruturas em detrimento da compreensão aos princípios, e dos aspectos que fundamentam os mesmos, em suas medidas históricas e até mesmo pragmáticas.

O apego à forma em detrimento da substância vem produzindo um Direito cada vez mais apartado dos princípios e, por consequência, das vontades e interesses daqueles que legitimam a norma posta. A norma positivada se torna o real soberano em detrimento das consciências humanas. O resultado é um sistema fechado em si, averso ao exercício da faculdade da razão e que prioriza a auto-sustenção[vi].

É preciso que se atente e se reveja a doutrina do apego exclusivo à excelência do domínio da técnica normativa instrumentalizada em detrimento de outros aspectos substanciais do conhecimento jurídico ora cultivada pela larga maioria dos operadores e acadêmicos do Direito.

Deve-se, sim, imbuir-se daquele estado de inquietação e perplexidade perene da Filosofia em relação ao Direito, prestar-lhe, pois, a devida reverência exigida por meio do adequado uso da faculdade da razão e assim, e apenas então, amar o Direito em seu aspecto de conhecimento.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N.. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: UNB, 2004.
______.Liberalismo e democracia. Brasiliense: São Paulo. 2000.
______.Teoria da norma jurídica. EDIPRO: Bauru. 2001.
______.Direito e estado no pensamento de Kant. Mandarim: São Paulo. 2000.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2003.
FURET, François & Ozouf, Mona- Dicionário crítico da Revolução Francesa.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1989.
HABERMAS, J. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Vol. 01. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1997.
______. Comentários sobre verdade e justificação. In: SAVIDAN, P. (Org.). A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______.Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
DESCARTES, R. Discurso do Método. Martins Fontes: São Paulo, 2001.
PINZANI, A. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009.
REALE, M. Filosofia do Direito, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.


[1] Prof. Mário Basto é Advogado, Especialista em Direito Tributário (UFBa) e Aluno Especial do Mestrado em Filosofia da UFBa. Professor do Curso de Direito da Faculdade APOIO UNIFASS.



[i] “Quando se afirma que Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total. Assim, o sentido de universalidade revela-se inseparável da Filosofia.”. REALE, M. Filosofia do Direito, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000. p.07.
[ii] Não por acaso coube a Descartes, um dos grandes filósofos da humanidade, desenvolver o mais método científico da história da humanidade no que tange à investigação epistemológica. Descartes, como filósofo, se considerava, exatamente com Pitágoras, um amante da razão. Seu projeto filosófico, acima de tudo, passava pelo esforço de comprovação da existência divina por meio de processo científicos; processos esses que necessitavam de uma sistemática própria e passível de reprodução por outros em circunstâncias similares, para assim se definir um patamar mínimo, abrangente e ótimo de validade para argumentos. Assim é o método científico. O curioso era que Descartes era acima de tudo um filósofo, e assim sendo, entendia que não deveria ser escravo de método, mas sim que o método deveria ser apenas um meio para se validar uma estrutura argumentativa perante uma comunidade acadêmica ampla. Ironicamente aqueles que seguiram ao longo do tempo o método de Descartes esqueceram do papel do método como instrumento e lhe atribuíram posição substantiva. A produção do conhecimento, assim, passou a ficar restrita às “verdades” produzidas pelo método, quando não se pode olvidar da necessidade frequente de se questionar qualquer parâmetro de verdade. Tanto apenas é possível pela motivação da inquietação constante que advém do ânimo filosófico, ou seja, da capacidade de se usar a faculdade da razão para se pensar o próprio conhecimento.
[iii] “Ora, a Filosofia do Direito, esclareça-se desde logo, não é disciplina jurídica, mas é a própria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de realidade, que é a ‘realidade jurídica’. Nem mesmo se pode afirmar que seja Filosofia especial, porque é a Filosofia, na sua totalidade, na medida em que se preocupa com algo que possui valor universal, a experiência histórica e social do direito”. REALE, M.Op. cit. p. 09.
[iv]Enquanto que o jurista constrói a sua ciência partindo de certos pressupostos, que são fornecidos pela lei e pelos códigos, o filósofo do direito converte em problema o  que para o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo. Quando o advogado invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranqüilo, porque a lei constitui ponto de partida seguro para o seu trabalho profissional; da mesma forma, quando um juiz prolata a sua sentença e a apóia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar cumprindo sua missão de ciência e de humanidade, porquanto assenta a sua convicção em pontos ou em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do direito, ao contrário, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o juiz a não se revoltar contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está apreciando, uma vez convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da lei vigente? Por que a lei obriga? Como obriga? Quais os limites lógicos da obrigatoriedade legal?” REALE, M. Op. cit. p.10
[v] “A missão da Filosofia do Direito é, portanto, de crítica da experiência jurídica, no sentido de determinar as suas condições transcendentais, ou seja, aquelas condições que servem de fundamento à experiência, tornando-a possível. Que é que governa a vida jurídica? Que é que, logicamente, condiciona o trabalho do jurista? Quais as bases da Ciência do Direito e quais os títulos éticos da atividade do legislador? Eis aí exemplos da já apontada preocupação de buscar os pressupostos, as condições últimas, procurando partir de verdades evidentes, ou melhor, evidenciadas no processar-se da experiência histórico-social.”.  REALE, M. Op. cit. p.10
[vi] "Uma consequência dessas considerações pode ser de grande interesse em nosso contexto: na medida em que a "cultura" e as "estruturas de personalidade" são carregadas de modo idealista, também o direito, aliviado de seus fundamentos sagrados, passa a receber pressão. O terceiro componente do mundo da vida, ou seja, a "sociedade", enquanto totalidade das ordens legítimas, concentra-se, conforme vimos, cada vez mais no sistema jurídico, na medida em que assume funções de integração da sociedade em sua totalidade. As transformações esboçadas nos outros dois componentes podem explicar por que as ordens modernas do direito só podem ser legitimadas a partir de fontes que não o colocam em contradição com as idéias de justiça e os ideais de vida pós-tradicionais que se tornaram decisivos para a cultura e a conduta de vida. Argumentos em prol da legitimidade do direito devem ser compatíveis com os princípios morais da justiça e da solidariedade universal - sob pena de dissonâncias cognitivas - bem como com os princípios éticos de uma conduta de vida auto-responsável, projetada conscientemente, tanto de indivíduos, como de coletividades. Essas idéias de autodeterminação e de auto-realização não se coadunam entre si com facilidade. Por isso, as respostas do direito racional às modernas idéias de justiça não tiveram o mesmo eco encontrado pelos ideais de vida." HABERMAS, J. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Vol. 01. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1997. p. 132-133.

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