quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A Hermenêutica Responde - 05

Pode condomínios que possuem elevadores pagar IPVA?

Prof. Milton Vasconcelos[1]

A despeito do absurdo da pergunta, a qual o próprio senso comum cuida de apressadamente responder pela negativa e afastar a possibilidade de tributação, mas há um propósito educativo interessante que pode ser alcançado a partir desta resposta: nem toda interpretação literal é restritiva.

A chamada interpretação literal é aquela feita tomando como base unicamente o texto da norma, que é a partir da revelação do conteúdo semântico das palavras (BARROSO,2009, p. 131). A seu turno, o fato gerador do IPVA é determinado por cada Lei estadual, mas o Constituinte cuidou de delimitar a competência tributária dos Estados e Distrito Federal ao outorgar a incidência deste imposto nos termos do art. 155, III, CF:

Art. 155 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: 
[...]
III - propriedade de veículos automotores; (BRASIL: 1988)

A par do texto constitucional, indaga-se: o que são “veículos automotores”?

A palavra “veículo” é indicada como “qualquer meio mecânico de transporte de pessoas ou coisas” (MICHAELLIS, 1998, p. 1778), o vocábulo “automotor”, a seu turno, expressa um adjetivo cujo significado é relacionado a todo objeto “capaz de se deslocar por seus próprios meios, sem ser puxado ou empurrado” (MICHAELLIS, 1998, p.  17).

Como a lei não trouxe uma definição do termo (o Código Nacional de Trânsito, em seu artigo 77 limita-se a classificar os veículos quanto a tração), tem-se que, se tomada numa interpretação literal, os aludidos elevadores poderiam perfeitamente subsumir-se à regra da incidência do IPVA, haja visa que,  são um meio mecânico de transporte de pessoas ou coisas e também possuem motor, logo numa acepção puramente literal, o resultado da interpretação literal do texto normativo do inciso III do art. 150 da Constituição Federal legitimaria o absurdo, pela perfeita subsunção de que condomínios que fossem proprietários de elevadores teriam de pagar IPVA.

Ademais, considerando que a interpretação literal funda-se tão somente no significado semântico das palavras, outro inconveniente dessa forma primária de interpretação é o próprio atributo polissêmico das palavras, onde uma mesma palavra pode apresentar vários significados possíveis alterando assim definitivamente o sentido do texto quando a exegese funda-se tão somente em seu significado semântico.

Provocado a se posicionar acerca da possibilidade da incidência do IPVA para aviões, o Supremo Tribunal Federal limitou esta incidência a veículos automotores terrestres, baseando-se para tanto numa interpretação histórica, haja vista ser o IPVA o substituto da antiga Taxa Rodoviária Única. Nesse sentido, veja trecho do voto então Ministro Francisco Rezek, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 379.572 RJ:

[...]Tentei saber, mediante pesquisa da realidade objetiva, qual a trajetória histórica da norma, e o que neste momento sucede sob o pálio da regra constitucional que atribui aos Estados competência para instituir imposto sobre a propriedade de veículos automotores. Verifiquei que temos, neste caso, um imposto que, na trajetória constitucional do Brasil, sucede à Taxa Rodoviária Única, e não me pareceu, examinados os sucessivos textos constitucionais recentes que, em qualquer momento, tenha sido intenção do constituinte brasileiro autorizar aos Estados, sob o pálio do imposto sobre a propriedade de veículos automotores, a cobrança sobre a propriedade de aeronaves e embarcações de qualquer calado. Os conhecedores do modo nacional de se produzirem textos constitucionais hão de perguntar-se sempre se o constituinte, caso quisesse que o legatário da velha e conhecida Taxa Rodoviária Única se tornasse um imposto capaz de alcançar aviões e navios, teria se omitido de fazer referencia a embarcações e aeronaves (BRASIL: 2006)

Neste caso, observa-se o expediente do manejo conjunto de dois tipos de interpretações para que se alcance o verdadeiro sentido da norma, afastando-se assim a ingênua postura hermenêutica de se interpretar tão somente pelo atributo literal, numa ilusão de se encontrar a tão sonhada mens legis que tanto fascinou ou positivistas.
Nesse sentido, oportuna a lição da doutrina:

[...] interpretar significa remontar do signo (signum) à coisa significada, isto é, compreender o significado do signo. [...] assim o positivismo põe um limite intransponível à atividade interpretativa: a interpretação geralmente é textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será  antitextual, isto é, nunca se colocará contra a vontade que o legislador expressou na lei (BOBIO, 2006, p. 214)

A compreensão da norma portanto não se limita a uma espécie de interpretação, exigindo portanto trabalho complexo de combinação entre as distintas espécies de exegese do texto normativo, como no caso do já citado Recurso Extraordinário n. 379.572 RJ, onde o então Ministro Eros Grau, ampara-se no manejo conjunto a interpretação histórica, teleológica e sistêmica para alcançar a conclusão da na incidência do IPVA em aeronaves:

Vejamos se a interpretação histórica confirma essa conclusão [...]. Fica claro no contexto histórico de transferência da competência tributária sobre a propriedade de automóveis, caminhões e similares, excluída a relativa a embarcações e aeronaves, por dois aspectos muito importantes:
a) Não compunha a base de arrecadação da Taxa Rodoviária Única a incidência sobre embarcações e aeronaves.
b) A atribuição de competência tributária feita pela EC n. 27/85 assentou-se na competência administrativa para licenciar o uso dos veículos que, no caso dos aviões e embarcações, é federal.
A interpretação teleológica presta-se frequentemente a distorções enormes do sentido da norma [quando desvinculada de seu contexto histórico e sistemático]. Sem estender o argumento, pode-se citar o voto do Ministro Francisco Rezek quando da discussão dessa matéria no Supremo Tribunal Federal, em que parece haver adequada interpretação finalística, bem associada à histórica e à sistemática: ‘Verifiquei que temos neste caso um imposto que [...] sucede a Taxa Rodoviária Única, e não pareceu, examinados os textos constitucionais recentes, que, em qualquer momento, tenha sido intenção do constituinte brasileiro autorizar aos Estados, sob o palio do imposto sobre a propriedade dos veículos automotores, a cobrança sobre aeronaves e embarcações de qualquer calado.’
Finalmente, numa interpretação sistemática, também se verifica a lógica de que o IPVA seja restrito aos veículos automotores terrestres, excluindo-se as embarcações e aeronaves, dada a vocação desses últimos em atender transporte intermunicipal, interestadual e internacional. A competência administrativa para a fiscalização destes meios de transporte é exercida pela União, de maneira coerente com a natural independência ou desvinculação desses meios de transporte relativamente a um município ou região, o que confirma ser mais sistemático corresponda sua tributação à União. (BRASIL:2006)

Do ponto de vista puramente gramatical, não resta dúvida de que elevadores são abrangidos pelo conceito manifestado pela expressão “veículos automotores”, eis que certamente são meios de transporte com tração própria, contudo há de se observar que nem sempre o significado semântico indica a melhor interpretação da norma, existindo até mesmo hipóteses (como essa dos elevadores) em que a cega obediência a interpretação literal pode  conduzir a resultados opostos, sendo até extensivos, como neste absurdo caso proposto da tributação do IPVA sobre elevadores.

Em verdade, a postura literal, traduz, quando muito, o início da interpretação e nunca pode ser considerado o único meio de todo o trabalho interpretativo da norma, haja vista não ser suficiente a simples correspondência das palavras para que se alcance a efetiva mens legis, consoante determina o art. 5 da LINDB que vincula a interpretação da lei a um atributo teleológico: os fins sociais.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone Editora, 2006.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 379.572 RJ. Relator Min. Marco Aurélio. Julgado em 20 de setembro de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso em 29 de agosto de 2013.



[1] Prof. Milton Vasconcellos é Advogado, Especialista em Direito Público (FABAC), Professor de Hermenêutica, Direito Tributário e Direito Penal da Faculdade Apoio Unifass.

2 comentários:

  1. Eu, mesmo antes de ocupar uma cadeira de uma faculdade, sempre pensei que as leis deveriam ser como as palavras da Bíbli Sagrada, não sou evangélico nem católico e não estou postando esse comentário com objetivo religioso, o grande diferencial da Bíblia é que ela serviu para a humanidade ontem, serve hoje e continuará servindo amanhã graças a interpretação sempre atualizada do seu conteúdo, as leis deveriam ser pensadas para atravessar o tempo com interpretações par e passo com a modernidade, se tomarmos como base interpretativa os princípios gerais já estamos num bom caminho para "remendarmos" cda vez menos nossa constituição, haja visto o sentido abrangente da interpretação dos princípios.

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    1. Isso que vc falou já existe em nosso direito Darthagnan... e em Hermenêutica constitucional é atribuído à função dos conceitos jurídicos indeterminados, cujo teor bastante subjetivo, permite ao intérprete sempre exercer a atualização da norma por meio da interpretação, impedindo assim o engessamento do direito.

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