A
perspectiva de um Estado sem Soberanos
Prof.
Mário Bastos[1]
Há um evidente
distanciamento em nossa contemporaneidade desde a origem até a interpretação
dos fatos que culmina em compreensão equivocada generalizada acerca da palavra
Anarquia; ao bem do quanto ora aforado faz-se perceptível a - auto evocada ou por
outrem imposta - inapropriada associação de condutas, comportamentos, atos ou
discursos de determinadas esferas públicas ou indivíduos a um alinhamento com
algo que se teima em definir como manifestações políticas de teor anarquista.
É comum, a exemplo,
associar a atos de tumulto ou desordem a um alinhamento político com ideais
anarquistas. Esta é a primeira ideia equivocada que se faz preciso denunciar
aqui.
A anarquia é, em
verdade, uma forma de pensamento política, ou, melhor digamos, como preferem a
maioria dos autores, uma forma de filosofia política. E como fazer filosofia é acima de tudo assumir
uma perspectiva crítica através do exercício da faculdade da razão acerca do
objeto de estudo, sendo o objeto de estudo da filosofia política as relações
que se dão entre indivíduos no processo de associação e estruturação da
complexa rede de interações, então o pensamento anárquico é um modelo de
racionalidade que acima de tudo propõe soluções à referida rede de interações
que, uma vez firmada, denominamos de sociedade civil.
Etimologicamente a
palavra Anarquia significa, em termos simplificados, “ausência de poder”. Em
que pese a raiz grega, a origem de tais pensamentos não se restringe a excelsa
elite pensante do Peloponeso. A Anarquia, é verdade, talvez seja mesmo uma das
primeiras formas de filosofia política já pensada na história da humanidade.
Reputa-se ao filósofo
chinês Lao Tsé e aos princípios do Taoísmo, uma das primeiras propostas de uma organização civil sem soberanos. Em seu Tao te Ching, o “Livro do Caminho e da Virtude”, o mestre filósofo
defendia como uma de suas ideias essenciais a da “não-regência”, ou seja, de
que não deveria haver nem súditos nem regentes, ou seja, que deveria se afastar
a necessidade do gênero humano de se submeter a qualquer forma de poder que não
ao poder de si próprio.
O Anarquismo que nos é
mais identificável é, todavia, aquele que emerge da efervescência social e
política do século XIX, tendo como um de seus principais nomes, Proudhon e
Bakunin. É possível afirmar que foi Proudhon em sua obra “O que é a
propriedade?”, ao se intitular um anarquista, quem trouxe o termo para a era
moderna e deu a este boa parte da feição que conhecemos hoje. A outra parte da
feição controversa vem do pensamento de Bakunin que se opunha ao ideal marxista
da ditadura do proletariado.
É em verdade desse
conflito de ideias de Bakunin com Marx que a percepção política do Anarquismo
que temos hoje emergiu, associada, acima de tudo, a já desgastados discursos de
luta de classes, supressão da propriedade privada, eliminação do capitalismo e
poder do proletariado como solução última de associação política estatal na
forma do comunismo.
Marxistas e Anarquistas
apesar de violentas divergências ao longo do tempo se encontram na ideia de
autogestão social. Enquanto o marxismo defende que a autogestão apenas se pode
alcançar através da implantação do socialismo como forma de governo, os
anarquistas entendem que a concepção socialista postulada enquanto aspecto de
manifestação de poder em nada diverge de outras manifestações de poder
centralizado que vicejaram na história da humanidade em sua maioria com
resultados nocivos.
Em síntese o que o
ideal anarquista defende é a possibilidade de uma sociedade na qual os
indivíduos exercitem a autogestão, sem submissão a qualquer outra forma de
poder que não aquela determinada por sua própria racionalidade.
Todavia, a incapacidade
de teóricos anarquistas em sustentarem o modelo político proposto em bases de
efetividade concreta sem lançar mão da alternativa de governos ou
normatividades jurídicas acabou por identificar tal viés de pensamento
político-filosófico com um depreciativo caráter utópico.
Em que pese o insucesso
em elaborações de modelos racionais viáveis, é incorreto entender que a
incapacidade de se lidar com aspectos contingentes pelo pensamento anarquista
os invalide por completo como viés de filosofia política. Assim fosse
deveríamos condenar também a democracia, haja vista a precariedade em se
manifestar conforme idealmente postulada pelos mais diversos pensadores.
Há inclusive argumentos
presentes no Contrato Social de Rousseau que podem ser analisados sob a
perspectiva de postulados de autogestão. Evidente que Rousseau ao pensar sua
obra não poderia ser influenciado pelo pensamento de Proudhon. Todavia, diversos
autores defendem que mesmo no Contrato Social ideais de autogestão já se
encontravam ali lançados.
Isto porque em sua obra
Rousseau defende seu ideal de estado com bases acima de tudo racionais que
propiciaria uma organização social que não submete homem algum, repousa no
princípio da igualdade absoluta de todos os membros que a compõem, e, mais
ainda, sobre a liberdade inteira de cada um; uma organização, percebida por
todos como necessária a cada um e que, assim sendo, não tem necessidade de ser
imposta por qualquer espécie de poder externo, mas que resulta como dirá Kant,
da autonomia dos sujeitos, nas palavras de Guillerm e Bourdet[2]: “Cada
um, determinando-se livremente por adesão ao que compreende ser o melhor para
si mesmo, encontra todos os outros sujeitos racionais para ajustar livremente a
instituição do mesmo contrato que realiza a vontade geral”.
A ideia de
auto-organização e autogestão rousseauniana faz-se ainda mais evidente quando o
mesmo explicita a forma de manifestação da Vontade Geral através da
manifestação das vontades particulares de cada indivíduo, sem interferência de
qualquer associação partidária ou mesmo de outros indivíduos. No entendimento
de Rousseau a Vontade Geral é apenas verdadeiramente legítima quando se manifesta
dessa forma, como um resultado do dissenso de cada um dos indivíduos racionais,
devidamente informados, com o juízo crítico apropriadamente amadurecido e sem
contato com outras fontes de pensamento que não a própria para evitar
direcionamentos de opinião – seja por parte de outros indivíduos seja por parte
dos ditos formadores de opinião pública – o que solaparia a integridade de seus
argumentos e geraria distorções que não corresponderiam ao fim e ao cabo à
Vontade Geral.
Assim, por uma
perspectiva é possível ler a vontade geral como a soma ideal das vontades
privadas reduzidas - pela via do dissenso - a um rol de interesses mínimos que
se justificam universalmente almejados pela mera evidência da vida em sociedade
que denominamos de interesse comum. Sendo o interesse comum a soma das vontades
privadas é possível tratar esse componente do Contrato Social como um resultado
de autogestão.
E sendo a Vontade Geral
a fonte da Soberania Popular conduzida pelo Interesse Comum, não é absurdo se
postular que Rousseau não tinha seus ideais políticos tão distantes do
pensamento anárquico.
A bem da verdade, temos
que ceder que tal perspectiva apenas se justifica quando pela via da releitura
de tópicos rousseaunianos com o viés anárquico. O próprio ideal de Soberania
Popular, central ao Contrato Social de Rousseau, já prejudicaria o alinhamento
pleno a qualquer de Anarquia. Afinal, a Soberania Popular evocada por Rousseau
não deixa de ser uma forma de centralização do Poder, legitimada pela Vontade
Geral para garantir a concretização do Interesse Comum da Sociedade Civil.
Um tipo especial de
soberano, é verdade, mas ainda assim um Soberano – a Soberania Popular -, em detrimento
de uma autogestão coletiva e racional em um nível tão elevado de efetividade que
dispensaria mesmo a existência de um governo e porquê não dizer da própria
normatividade jurídica, esteando-se apenas na presença consequente da
normatividade ética.
Entretanto, em que pese
não tenham evoluído ao ponto de perceber que uma forma de organização política
ideal para a sociedade civil prescindiria de uma centralização de poder
político em uma pessoa ou grupo de pessoas, é válido identificar que as pedras
fundamentais do pensamento político de Rousseau estavam absolutamente alinhadas
ao ideal de associação de indivíduos pela via da racionalidade aberta ao debate
sendo guiada por um interesse comum que se justificaria, acima de tudo, na
forma defendida também por Kant[3]
que um Estado ideal deve acima de tudo garantir o interesse comum, evitando que
a “ditadura da maioria” tome de assalto direitos subjetivos de toda e qualquer
minoria.
Tais direitos
subjetivos essenciais que emanam da esfera privada e a princípio se opõem ao
Estado e, portanto, ao poder público revestido pela legitimidade do poder
soberano - restringindo-o quando necessário – trata-se do rol de direitos que
aprendemos a chamar, pela herança revolucionária francesa, de direitos humanos.
Para Rousseau tratam-se
dos direitos à propriedade e de liberdade e daqueles que emanam diretamente
destes. Num primeiro momento há uma preocupação, como dito, de restrição a ação
do poder do Estado - quando exercendo o poder soberano - sobre as esferas de
exercício dos referidos direitos. Todavia, se evidencia também a necessidade de proteção desses direitos das ações dos outros indivíduos.
É nesse sentido que é
pertinente ponderar acerca da legitimidade das manifestações que lançam mão de
práticas identificadas com ideais anarquistas – a exemplo das black blocs – quando confrontadas com o
direito à propriedade privada e com a tensão inerente que há entre direitos
humanos e soberania popular conforme nos foi legada por Rousseau, especialmente
quando considerada a medida da segurança e o direito do uso da chamada força
comum do poder soberano como instrumento de garantia da coercitividade do
Estado.
REFERÊNCIAS:
GUILLERM, A. BOURDET, Y. Autogestão: Uma Mudança Radical. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
IMAGENS:
i - Símbolo da Anarquia
ii - Karl Marx.
iii - A Liberdade
iv - Jean Jacques Rousseau.
[1]
Mário Bastos é Advogado, especialista em Direito Tributário (UFBA) e Aluno Especial do Mestrado em Filosofia da UFBA. Professor de Filosofia e Filosofia do Direito, bem como de Consumidor e de Direito Constitucional da Faculdade APOIO UNIFASS. E-mail: mario.bastos.adv@gmail.com
[2]
GUILLERM, A. BOURDET, Y. Autogestão:
Uma Mudança Radical. Rio de Janeiro, Zahar, 1976. P. 52.
[3] Ideais
esses discutidos por Kant em vários níveis tanto em “A Paz Perpétua: um projeto
filosófico” quanto em “Metafísica dos Costumes. I Parte. Princípios Metafísicos
da Doutrina do Direito”.
Excelente texto, Prof. Mário.
ResponderExcluirFui ler um pouco mais e achei este blog com um texto legal, também.
http://www.rebeliao.org/2013/03/14/130-anos-da-morte-de-karl-marx-o-maior-pensador-da-humanidade/
Curiosamente ontem, enquanto escrevia esse texto, passava no Telecine Cult o ótimo filme alemão " A Onda" (http://www.imdb.com/title/tt1063669/?ref_=fn_al_tt_1).
ResponderExcluirO filme trata de uma experiência autocrática em uma escola fundamental na Alemanha. Vale a pena assistir.