sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A Hermenêutica Responde - 04

Quem mora em trailer deve pagar IPVA ou IPTU?

Prof. Milton Vasconcelos[1]


O Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana tem sua previsão nos termos do art. 32, CTN, o qual assim define seu fato gerador (BRASIL, 1966, p. 354):

Art. 32 - O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.
§ 1º - Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal, observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos dois dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:
I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
II - abastecimento de água;
III - sistema de esgotos sanitários;
IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;
V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.


A luz do texto normativo citado, percebe-se que o tributo além de incidir sobre a propriedade predial e territorial urbana, tem sua incidência restrita a tais bens localizados na zona urbana do Município. Tal zona é definida nos termos do parágrafo primeiro citado, quando o legislador estabelece como critério que a zona possua pelo menos dois dos melhoramentos citados entre os cinco incisos.

Pela simples leitura do texto de lei citado a resposta não é possível de forma tão clara, haja vista que, sendo o trailer um bem móvel, ele poderá ir de um lugar a outro onde estejam satisfeitas tais condições que a ei exigem para que a zona seja urbana.  Ademais, numa valoração espontânea, o trailer funciona como residência de muitas pessoas, poderia assim ser comparado a um bem imóvel para fins de tributação e atrair a incidência do IPTU?

Desde já afasta-se tal possibilidade haja vista a absoluta vedação a interpretação analógica em matéria tributária quando tal analogia resulte em criação ou majoração do tributo nos termos do art. 108, § 1, CTN (BRASIL,1966, p. 355):

Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I - a analogia;
[...]
§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.

Afasta-se portanto desde já quaisquer tentativas hermenêuticas do adágio romano de que onde vigora a mesma razão, deve-se aplicar a mesma disposição, a mesma solução (ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio), haja vista que, consoante cediço a interpretação extensiva-analógica encontra limites nos ramos do direito pautado na legalidade estrita, como é o caso do direito tributário. Nestes ramos do direito, prevalece a máxima da incidência da lei com função claramente restritiva (e não literal como defendem alguns), logo, nem toda interpretação literal é restritiva, destaque-se.

Uma vez impossível a interpretação analógica, volta-se então à valoração do fato gerador do tributo, em especial ao vocábulo “bem imóvel” citado no caput do artigo que, junto com a vedação a uma interpretação  analógica (extensiva) de trailer que não pode ser considerado  bem imóvel para fins de subsunção do fato gerador do IPTU, pacifica o entendimento pelo descabimento do tributo, por absoluta falta de previsão em lei.

A seu turno, o IPVA, Imposto sobre propriedade de Veículos Automotores, não tem previsão normativa expressa numa lei complementar, motivo pelo qual suas disposições gerais ficam a cargo de cada legislação estadual, que dentre outras define seu fato gerador.  Por todos contudo, há o comando constitucional do art. 155, III, CF que ao fixar a competência tributária dos Estado para criar citado imposto delimita sua hipótese de incidência (BRASIL, 1988, p. 150):

Art. 155 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[...]
III - propriedade de veículos automotores;

Interessante aqui é a aplicação do já afirmado antes: de que “nem toda interpretação literal é restritiva”, haja vista que, se tomada em sua acepção literal, nada poderia afastar a incidência do IPVA de lanchas e Jet ski, que certamente são veículos e possuem motor. Tal incidência contudo já foi afastada pelo STF por ocasião do julgamento do RE 255.111-2/SP, no qual destaca-se trecho do voto então Ministro Sepúlveda Pertence:

Sr. Presidente, o caso concreto - embora proveniente do Estado de São Paulo e relativo à incidência ou não do IPVA sobre aero­naves é perfeitamente assimilável ao do RE 134509 - do Estado do Amazonas e atinente a embarcações - no qual, dissentindo do voto de V. Exa. - hoje mesmo, o Tribunal acompanhou, o voto­ vista que proferi para assentar, com base na Constituição, que o campo de incidência do mesmo imposto estadual é circuns­crito à propriedade de veículos automotores de transporte terrestre.

Assim, deve-se compreender a vinculação à lei como uma função restritiva da interpretação e não uma função literal.

Por outro lado, considerando a regra de vedação á interpretação extensiva em matéria tributária quando esta implicar em exigência de tributo, já citada aqui por ocasião da abordagem sobre o IPTU, resta o afastamento do trailer a uma condição de automóvel por analogia.

Ademais pela simples valoração do texto normativo observa-se que o trailer não possui motor, não sendo portanto possível sua consideração como veículo automotor.

Porém, com de conhecimento maciço, tais equipamentos pagam IPVA, qual o fundamento então?

A compreensão da indagação começa a ser percebida a partir do art. 120, CTB que prevê a obrigação de registro destes equipamentos perante o DETRAN (BRASIL, 1997, 432):

Art. 120. Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei.

Realizado tal registro, estabelece a lei em seu art. 121, CTB que será expedido  o CRV (Certificado de Registro de Veículo), surgindo assim  o problema quando valorada esta situação ao teor do art. 124, CTB, quando o legislador condiciona a expedição do novo CRV à realização do licenciamento anual do veículo (BRASIL, 1997, 432):

Art. 124. Para a expedição do novo Certificado de Registro de Veículo serão exigidos os seguintes documentos:
[...]
II - Certificado de Licenciamento Anual;

Ora, se para licenciar o veículo a lei estabelece a obrigação de quitação das obrigações tributárias (art. 131, § 2, CTB), como interpretar a situação do trailer que, como já visto necessita do CRV (BRASIL, 1997, 433)?

Art. 131. O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.
[...]
§ 2º O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas. (grifos nossos)

Em síntese é possível organizar as ideias assim:

1 – a quitação de tributos (dentre estes o IPVA está vinculado ao licenciamento do veículo automotor (art. 131, § 2, CTB);
2 – o trailer não tem tração própria (não tem motor) logo não pode ser considerado veículo automotor, mas sim um reboque (ou semi-reboque);
3 - Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque devem ser registrados no DETRAN para obtenção do CRV (art. 120, CTB);
4 – Realizado tal registro, estabelece a lei em seu art. 121 que será expedido o CRV (Certificado de Registro de Veículo);
5 – O art. 124, CTB, exige o licenciamento anual do veículo para expedição do novo CRV.

Dessa forma, à luz dessa confusão normativa trazida pelo legislador, indaga-se: quem mora em trailer, deve pagar IPVA?


A resposta deve ser indicada por partes: NÃO INCIDE o IPVA pelo fato de subsunção ao fato gerador, mas a incidência ocorre por via oblíqua pelas exigências normativas do Código de Trânsito. Pois sendo o trailer um tipo de reboque a lei determina a sua obrigação de realização registro com fins de obtenção do CRV (Certificado de Registro de Veículo), contudo a expedição deste documento condiciona-se ao licenciamento do veículo e este procedimento a seu turno condiciona-se à quitação das dívidas tributárias.

Assim, objetivamente, trailer não paga IPVA, pois não há subsunção ao fato gerador. Defende-se portanto, que tal exigência por via oblíqua deve ser tomada por ilegal e afastada com base no critério da especialidade, onde norma especial derroga norma geral (lex specialis derogat legi generali), haja vista que não se pode admitir como lícita uma expropriação do patrimônio do contribuinte por vias indiretas.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

______, Lei 5172 de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Lex: Coletânea de Legislação e Jurisprudência, São Paulo, v. 48,  jan./mar.,1. trim. 1985. Legislação Federal e marginalia


______ Lei 9503 de 27 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Lex: Coletânea de Legislação e Jurisprudência, São Paulo, v. 48,  jan./mar.,1. trim. 1985. Legislação Federal e marginalia.



[1] Prof. Milton Vasconcellos é Advogado, Especialista em Direito Público (FABAC), Professor de Hermenêutica, Direito Tributário e Direito Penal da Faculdade Apoio Unifass.

4 comentários:

  1. Bem, como o trailler, mesmo que estacionado indeterminadamente, é um veículo automotivo, paga IPVA, caso o proprietário opte por fixar o trailer como residência em terreno próprio, o proprietário deverá pagar o IPTU, não pelo trailer mas sim pelo terreno, uma vez que não haja estrutura imóvel construida sobre o terreno o IPTU deve ser calculado sobre o valor do terreno sem construção. Se o trailer não for mais utilizado para locomoção, pode o proprietário deixar de pagar o IPTU, afinal ter um veículo automotor com IPTU atrasado não é infração, desde que esse veículo não circule.

    ResponderExcluir
  2. O entendimento pacificado e aplicado pelo Detran Bahia, é que será configurado um veiculo auto motor, tributando assim com o IPVA, mesmo tratando de um meio residencial.


    Jean Cerqueira Lima
    5º Semestre, Apoio.

    ResponderExcluir
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  4. Querido Prof., a respeito da indagação do texto, reporto - me da seguinte maneira, à luz dos dispositivos legais não há o que se falar em tributação a não ser pelo fato do CRV, onde colocado como reboque ou semi reboque, condiciona-o a algum veículo automotor que necessariamente estará vinculado ao IPVA. Em se tratando do IPTU, poderá o trailer estar em via pública ou pátios públicos destinados à essa função. O que poderia ser cobrado uma taxa mensal de utilização do espaço público, diferentemente de uma tributação prevista em legislações específicas.

    ResponderExcluir