Por: Prof. Gustavo Menezes Vieira
Muito se tem falado
acerca da irrupção popular que acometeu o país no último mês. Pouco, porém,
ainda tem sido analisado acerca de sua dimensão jurídico-constitucional. Um
aspecto em particular é objeto do presente comentário: sua interface
transversal entre ordem constitucional e regimes jurídicos diversos no plano
global. Essa perspectiva, ainda pouco perlustrada, encontra-se no cerne da
problemática tutela de direitos humanos e fundamentais trazidos à tona pelos
manifestantes.
Como cediço, o estopim das
manifestações vai muito além da majoração das tarifas do transporte coletivo no
estado de São Paulo, mas envolve o direito à prestação de serviços públicos
essenciais com qualidade em todo país. A ocorrência do movimento às vésperas da
Copa das Confederações é sintomática da insatisfação popular frente ao
contraste entre os gastos exorbitantes para realização da competição[1], e
a pouca ou nula melhoria na qualidade de vida urbana. “Não se faz Copa do Mundo
com Hospitais[2]”,
afinal.
Nesse prisma, poder-se-ia
dizer que as manifestações de junho, ainda que incidentalmente, derivam de uma
reação sistêmica à invasão colonizadora de sistemas jurídicos transnacionais
como a Lex Sportiva e a Lex Mercatoria que impõe não apenas elevadas
alocações orçamentárias para realização do evento esportivo como disposições
normativas que restringem direitos fundamentais[3].
A mobilização popular
iniciada na capital paulista e espraiada por diversas capitais do país, contudo,
longe de resultar em uma inflexão maior acerca da eficácia de direitos, levou o
Estado brasileiro a protagonizar uma vexatória série de atos atentatórios às
garantias constitucionais: uso indiscriminado de gás lacrimogênio[4];
balas de borracha atiradas em pessoas que filmavam os acontecimentos de suas
residências[5];
policiais não identificados intimidando cinegrafistas amadores[6]; detenções
arbitrárias e conduções coercitivas por “porte de vinagre[7]”
(!); e mesmo utilização de munição letal[8]; dentre
diversos outros abusos, tão pouco noticiados pela grande mídia.
Governos estaduais de
norte a sul, à esquerda ou à direita do espectro político, demonstraram total
menoscabo a direitos consignados na Carta Magna e em tratados internacionais
como o Pacto de São José da Costa Rica. Não se espanta que tenha havido uma
aversão generalizada nas manifestações a partidos políticos de qualquer
espécie.
Pode-se afirmar que as
manifestações (e a repressão estatal que se seguiu) tornaram ainda mais patente
o caráter paradoxal da tutela de direitos humanos e fundamentais, de um lado
uma “bondade” fora e, de outro, “maldade” dentro das fronteiras nacionais[9].
Ao mesmo tempo em que consagrados internacionalmente, sua ratificação no plano
interno não é sucedida por uma correspondente aplicabilidade prática. O plano
discursivo global fenece diante da práxis institucional intraestatal.
Deveras, o desafio da
tutela de direitos na contemporaneidade não é tanto sua justificativa, mas
concretização[10].
No que tange às manifestações de junho, essa concretização imprescinde da
responsabilização jurídica dos agentes públicos violadores de direitos humanos
e fundamentais. O histórico jurisdicional brasileiro, contudo, não revela
prognósticos muito favoráveis a esse fim[11].
É nesse ponto que os
caminhos de um constitucionalismo multinível podem servir para contornar os
obstáculos da impunidade reinante em Terra
Brasiliae. Da mesma forma que o sistema jurídico brasileiro interage com as
pretensões regulatórias da FIFA, o mesmo encontra-se permanentemente em
interface com outras ordens normativas, como a representada pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
As relações
multiníveis, características de um constitucionalismo globalizado ocorrem, de
maneira heterárquica e reticular. Cada regime jurídico atua tendo sua
autorreferência constitutiva como centro e os demais sistemas como periferia.
Desse modo, independente das pressões da Lex
Sportiva, o sistema interamericano
pode encerrar a a responsabilização internacional do Estado brasileiro pelos excessos
cometidos durante as manifestações de junho.
Um grupo de advogados
baiano se predispôs a seguir essa trilha. Os caminhos estão abertos. Basta segui-los.
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[1] Ao lado da precarização crônica
dos serviços, convive-se com a prodigalidade de gastos públicos no evento que,
de acordo com Consultoria Legislativa do próprio Senado, será o mais caro da
história, superando o montante gasto nas três últimas edições, inclusive a
África do Sul, com problemas de infraestrutura considerados tão ou mais graves
que os brasileiros. Apenas o estádio Mané Garrincha em Brasília, com custo
estimado em (h) um bilhão de reais, figura nada mais nada menos como o estádio
de futebol mais caro do planeta.
[3] Tome-se como
exemplo a restrição à liberdade consubstanciada no art. 32/33 da “Lei Geral da
Copa” LO 12.663/12 (internalização expressa de diretivas da FIFA), que
estabelece tipos penais autônomos como o marketing de emboscada. Ou a constrição
ao direito fundamental de ir e vir, cristalizada no art. 11 do mesmo diploma
legal, no qual se estabelece uma “área de segurança” em torno de dois
quilômetros dos estádios, impedindo mesmo moradores de lá trafegarem. O citado
dispositivo normativo é objeto de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
(ADI) promovida pela Procuradoria Geral da República
[9] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. 2ª
Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
[10] BOBBIO, Norberto. A era dos
direitos. São Paulo: Campus, 2004.
[11] A título de exemplo, vinte anos
após o massacre do Carandiru ainda não há trânsito em julgado no processo
decorrente. Na Bahia, o comandante da tropa de choque que invadira o campus da
UFBA em maio de 2001, símbolo mor da truculência carlista é o atual comandante
geral da PM-BA, nomeado pelo governo petista de Wagner. O critério é claro:
garantir uma cúpula da força policial de subserviência canina, agentes que
cumpram ordens do governante de plantão por mais inconstitucionais que elas
sejam.
DADOS DO AUTOR:
Prof. Gustavo Menezes Vieira é Advogado, Mestre em Direito Público pela UFBA (2013), Especialista em Direito Público pelo JusPodivm (2012); "Alumno" da academia de Haia de Direito Internacional (2011); Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA. Professor da Faculdade Apoio Unifass.
Muito boa esta reflexão.
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