Ei...
Rapaz! Pegou essa camisa onde, negão?
Por:
Franklim da Silva Peixinho[1]
“- Rapaz... preciso falar com você. Aconteceu um
lance desagradável esse carnaval comigo.
-
Qual foi?
-
Fui impedido de entrar em um camarote, o qual já estava, sai para ver minha
esposa, quando retornei fui impedido por que estava sem o ingresso, embora a
camisa fosse o suficiente para entrar e eu já estava lá dentro.
-
E aí?
-
E aí? Quando questionei o porquê de outras pessoas adentrarem sem ingresso, só
com a camisa, como eu, o cara me disse: “não me interessa os outros, mas saber
onde você pegou essa camisa, negão” ... “aqui não é espaço pra você”. A partir
daí me vi cercando de seguranças tão negros como eu... pira aí bicho!
-
O pior irmão é que nenhuma guarnição da PM quis me acompanhar para prender o segurança,
tive que insistir muito para no terceiro posto da civil no circuito do carnaval,
eles registrarem a ocorrência”[2].
Esta
é uma história real que ocorreu no carnaval de Salvador em 2016, em um grande
camarote organizado por uma emissora de televisão. Poderia ser um dos casos que
entraria na cifra obscura[3] ou
"dark number”, relacionados aos
crimes de racismo e injúria racial. Entretanto, tem um “dendê” ou uma “pimenta
malagueta” a mais no tocante ao racismo institucional enfrentado pela vítima.
Inicialmente,
cabe distinguir o crime de racismo da injúria racial. Aquele está previsto nos arts.
3° a 20 da Lei 7716/89, cujo bem jurídico-penal é a igualdade ou ainda a
proteção a dignidade, e seus infinitivos verbais só se consumam na forma
dolosa. Objetivamente, constitui-se no ato de impedir a vítima de entrar em
estabelecimentos escolares, festivos, ou obstar que se utilize de serviços,
assuma empregos, cargos públicos e privados em razão da cor ou questões
raciais; processa-se através da ação penal pública incondicionada. Ademais, o
crime de racismo é inafiançável e imprescritível (art. 5°, inc. XLII, da CF/88).
Já a injúria racial tem por bem jurídico-penal proteção a honra subjetiva, ou
seja, o que o indivíduo pensa de si diante de uma ofensa moral com relação a
sua origem étnica. Trata-se de um crime que se processa mediante ação penal
pública condicionada a representação, portanto, não se aplica a decadência
(art. 103 do CP), contudo é um crime que prescreve em oito anos, calculando-se
da pena máxima em abstrato (art. 109 do CP).
Não
é novidade que no carnaval soteropolitano o “mito da democracia racial”,
traçado por Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala” mostrar ao mais
preguiçoso observador, a falsidade desta igualdade de condições de convivência
e tratamento entre negros e brancos nos espaços momescos.
Para
quem tem mais de 30 anos, guarda bem na memória os latentes ou não manifestos
critérios de seleção de “gente bonita” dos grandes blocos carnavalescos tradicionais
de Salvador, cuja ficha de inscrição com a foto 3x4 e o indispensável registro
obrigatório de endereço, balizava a escolha de um público branco das “Pitubas”
da vida. Na “pipoca” espremida por cordeiros negros e “fantadas” da “fila de soldados, quase todos pretos Dando
porrada na nuca de malandros pretos”[4],
o “batifum”[5],
para além de uma luta imaginária das espadas de Ogum (uma viagem interpretativa
minha...) é o local de privação e luta por parcos espaços, que sobram do que
foi ocupado pela Casa Grande, garantido a este grupo o seu direito de pular,
cheirar e beber em paz, com proteção e conforto; ainda bem que pelo menos “a praça Castro Alves é do povo”, como a
pipoca do Kannário, Armandinho, Luiz Caldas... pelo menos.
Portanto,
racismo no carnaval da Bahia não é novidade – sem falar na Axé Music (aí é outro
pano pra manga). O estarrecedor deste enredo é a postura dos agentes públicos,
ao julgar discricionariamente que a “notitia
criminis”, o racismo praticado nesse caso, era algo de somenos, “normal ou
coisas do carnaval” – palavras ditas no contexto pelos policiais –, ou ainda
quando da procura da polícia judiciária, se teve a negativa do registro da
ocorrência, por ser na interpretação do “puliça” um caso banal que não justificaria
a atuação do poder punitivo. Isto é uma perversa face do racismo praticado pelo
Estado: o racismo institucional com o pouco caso ou relativização da dor
espiritual do negro e da negra vítima de tais atos.
A
vítima deste enredo, que é advogado e, inclusive, compositor de sucessos da
música baiana, ao se recompor do abalo moral, reverberou sua dor em diversos
espaços institucionais, culturais e políticos (Ministério Público, Aganju, Blog
de João Jorge do Olodum...), o que resultou numa intimação para depor sobre o
ocorrido, sete meses depois do carnaval na Delegacia do Rio Vermelho, e para
surpresa nossa, a suposta “notitia
criminis” registrada, em sua terceira tentativa no circuito do carnaval,
sequer foi formalmente lavrada, ou seja, inexistia.
Neste
ano de 2018 um menino negro foi vítima de racismo pelo segurança de um grande
shopping de Salvador, em ato similar vivido pelo nosso personagem aqui. Será algo
pontual?
O
negro quando é vítima, como neste caso, enfrenta estas barreiras para a tipificação
penal do racismo e também da injúria racial, com interpretações que relativizam
eufemisticamente a conduta típica, tal como, “não foi bem assim”, “o racismo tá
na sua cabeça”, “a raça é humana”, “não sou racista, inclusive tenho amigos
negros”. Do contrário, quando estamos do outro lado da relação jurídica, ou
melhor, quando somos os algozes, a seletividade penal se impõe e “dicomforça”, pois
a persecução das agências punitivas tem alvos preferenciais fenotípicos e
geográficos. Quem mais morre, quem mais é encarcerado é a população jovem negra
de baixa renda dos bairros periféricos, e o cárcere tem cor! (ver o vídeo
“Negro” do canal “Portas dos Fundos”).
Em
minha pesquisa de mestrado no espaço prisional baiano no ano de 2014, verifiquei
que 82,22% dos encarcerados na Bahia estão em completa privação de liberdade,
61,77% são homens entre 18 a 29 anos de idade, e 82.33% são afrodescendentes.
Um quadro de homens negros jovens em completa privação de liberdade, por crimes,
em sua maioria, contra o patrimônio e entorpecentes, pois do conjunto global de
tipos penais praticados pelos internos, roubo, furto e tráfico de drogas juntos
correspondem a 74,54% (PEIXINHO, 2014).
Criminologicamente,
há um componente racial no estado penal brasileiro, política criminal racial
denunciada por Wacquant (2007) como práxis punitiva nos Estados Unidos, onde os
inimigos, tal como aqui, são um novo grupo de improdutivos, os que não podem
consumir na atual sociedade e atacam a propriedade para participar do banquete
da “ostentação”.
Merton
(1970), a partir das finalidades culturais do capitalismo pautado na
meritocracia e esforço de cada mortal para “ter bala na agulha”, entende que a
frustração, ao se constatar de que nessa sociedade desigual e exploradora, por
mais que você se esforce você não será “o rei da balada”, fomenta a conduta
inovadora, o desvio, ou o crime – como queira – para atingir estas razões
teleológicas do American of life.
A
reflexão crítica sobre etnicidade e punição penal se impõe com mais vigor em
nossa realidade brasileira, jungido a análise do local da relação jurídica em
que figuramos, nós negros, no caso concreto, ofensor ou ofendido, pois esta
topografia e a cor da pele define qual o Direito Penal aplicável, máximo ou
minimalista.
Pois
bem, ao sairmos da Delegacia do Rio Vermelho lembrei de Victória de Santa Cruz
em “Gritaram-me negra”. Todos os dias há um grito explícito e velado, que
pretende demarcar espaços. Necessário não cair na infantil crença desta fábula
da democracia racial, pois a punição penal brasileira é racista das Ordenações
até a atualidade. Ao final, nos indignamos, pensamos e resolvemos compor, pois
“... mesmo que o rádio não toque, mesmo que a TV não mostre, aqui vamos nós, cantado
reggae, Alelulia Jah!...”[6]
Axé
e resistência!
REFERÊNCIAS:
MERTON,
Robert. Estrutura e anomia. In: MERTON, Robert, Sociologia. Teoria e estrutura.
São Paulo: Mestre Jou, 1970.
PEIXINHO,
Franklim da Silva. Drogas e sociedade carcerária no sistema prisional baiano:
Um estudo das condições para implantação do programa de redução de danos a
partir da análise da Colônia Penal de Simões Filho. Dissertação apresentada ao
Curso de Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas e Segurança
Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB – Bahia, como
requisito para o título de mestre. Orientador: Prof. Dr. Herbert Toledo Martin,
2014.
WACQUANT,
Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A
onda punitiva]. Tradução de Sérgio Lamarão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
v. 6.
[1] Mestre em Gestão de Políticas
Públicas e Segurança Social pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano,
professor de Direitos Humanos e Fundamentais da UNIFASS, Filho de Gandhy e
folião pipoca.
[2] Fato real que acompanhei
enquanto advogado da vítima.
[3] Conceito da criminologia crítica
acerca da subnotificação de crimes e as respectivas razões para tais.
[4] Trecho canção “Haiti” de Caetano
Veloso.
[5] Em “baianês” é quando as pessoas
estão pulando em posição de luta no carnaval de Salvador.
[6] Trecho da canção Sangue Azul de
Edson Gomes.
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