Por:
Franklim Peixinho[1]
No
universo da Axé Music quando “Dandalunda”, composta por Carlinhos Brown,
estourou na voz de Margareth Menezes como hit do carnaval soteropolitano em 2002,
a indústria de massa da música baiana demandou dos compositores canções nesse
formato: duas estrofes, com um refrão apropriado de cânticos sagrados do
Candomblé. “Dandalunda” é uma divindade da fertilidade no Candomblé de Nação
Angola, etnicamente de origem banto[2], cujos
Deuses são chamados de Inkises.
Brown
em seu estilo de composição, sempre fez referência a elementos da cultura afro-brasileira
– as canções “Fogo dos Ancestres”[3] e
“Maraçá”[4]
são exemplos disso – e tal como a rainha “Maga”, estes dois artistas negros têm
fortes ligações culturais e religiosas com o “nagô” e “iurobá” jeito de ser do
baiano “ancestralizado” da África. Não há problema algum em cantar, poetizar ou
salmodiar elementos sacros do Candomblé, como os “Tincoãs” fizeram em seus
belíssimos discos, sobretudo o de 1973, pela gravadora EMI-Odeon; e este que
vos escreve também assim o fez, com a canção “Umbualana”[5],
composta em parceria com Claudio Tavares, e gravada pelo grupo Motumbá em 2008
no Cd “Motumbá pra você”.
A
grande questão é quando a indústria de massa se apropria de elementos culturais
e estéticos de matriz afro-brasileira e dos povos originários para exclusiva e
fria lucratividade, sem a devida referência e retorno financeiro às comunidades
de onde se usurpou os signos culturais. Aí relembro uma fala do professor Jaime
Sodré, Ogan[6]
da Casa Branca, em entrevista a TVE, questionando até que ponto tal apropriação
é uma homenagem ou uma mera exploração comercial de um bem cultural de um povo.
Por outro lado, conceituar cultura é um trabalho
exaustivo, na Antropologia há 160
definições, mas utilizemos a noção de que cultura “engloba os modos comuns e aprendidos da vida, transmitidos pelos
individuos e grupos, em sociedade” (LAPLANTINE,
2005).
Cultura, juridicamente, é um direito fundamental de
segunda dimensão, inscrito no art. 215 da CF/88, que demanda prestações positivas por meio de
políticas públicas, com o fito na defesa e valorização do patrimônio cultural
brasileiro, na proteção as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, na democratização do acesso aos bens de
cultura, e a valorização da diversidade étnica e regional por meio do Plano
Nacional de Cultura.
A
apropriação cultural pela indústria, artistas e grupos difusos é uma temática
que tem incomodado o movimento negro no Brasil, pois há ressignificações de
mercado dos valores estéticos e culturais de matriz afro-brasileira e ameríndia,
em face de uma cultura branca dominante que sempre se impôs como o parâmetro do
belo e perfeito. Entretanto, adereços, musicalidade e até costumes e consumos
afro-originário-brasileiros são incorporados no conjunto de produtos e serviços
oferecidos pela sociedade de consumo, que nega ou olvida a origem étnica de
tais símbolos e representações nas suas tratativas comerciais.
Também
esta realidade – a apropriação cultural – não se restringe ao Brasil, pois a
comunidade mexicana de Sant-Maria Tlahuitoltepec teve o seu tradicional bordado,
comercializado e utilizado pela grife francesa Isabel Marant, sem qualquer
referência a sua origem mexicana, apesar de mais de meio século de existência e
fabricação desta indumentária por aquela comunidade (RIBEIRO, 2017). Caso
semelhante, foram os coletes do vilarejo romeno de Beiuș e a grife francesa
Dior que vendeu cada peça “... por 30 mil
euros, mas as artesãs que produzem casacos do tipo há mais de cem anos não
foram sequer citadas pela marca”[7].
Em
nosso comezinho nicho político são diversas as questões apontadas como
apropriação cultural, a começar pelo “bolinho de Jesus”[8] ou
verdadeiramente o “Acarajé”, a comida de Yansã, Orixá feminino e guerreira,
Deusa dos ventos e tempestades. Alguns evangélicos rebatizaram esta comida
sagrada do Candomblé para negar as origens africanas deste alimento, em uma
motivação pautada pela intolerância e racismo religioso. O rebatismo da comida
de Oyá não logrou êxito diante da atuação da Associação das Baianas de Acarajé.
O
tão polêmico uso do turbante por mulheres brancas é também alvo de contestação.
A origem deste envoltório está nos panos de cabeça, chamado de torço ou “gèle”,
utilizadas pelas mulheres yourubanas no Candomblé de Nação Ketu, mas não se
restringe a esta linha candomblecista, pois há o uso em outras nações, como a
Angola e Gege, e na Umbanda também; representa, ainda, pela forma de arrumação
do “gèle”, o tempo de iniciação na religião e o Orixá ao qual o adepto é
“filho”. A incorporação do turbante como peça de vestuário, vazia de
significado étnico e religioso, torna-se problemático por reforçar concepções
racistas ao negar ou invizibilizar a africanidade e afirmação política da
negritude nesta indumentária.
Outro
tipo de apropriação é o científico, com relação aos saberes tradicionais das
populações originárias das Américas. A manipulação das “drogas da terra” e o
domínio dos processos químicos pelos povos tradicionais foram, e ainda o são
por meio de missões “científicas”, apreendidos, sorrateiramente, e deram azo,
por exemplo, a sintetização da cocaína a partir da dádiva de Pacha Mama[9], a
folha da coca, o que gerou grandes lucros ao laboratório alemão Bayer. Aqui no
Brasil a disseminação do uso da cocaína, ópio e morfina eram os “vícios sociais
elegantes” dos filhos da elite branca abastada do início do século XX, enquanto
a sociose deselegante, o ópio do pobre, o fumo do negro, a diamba, ou
simplesmente a maconha, era vingança do negro escravizado para com a sociedade
brasileira, segundo o racialismo (pseudo) científico lombrosiano de Nina
Rodrigues e Rodrigues Dória (ADIALA, 1983) (SAAD, 2013). Cocaína, morfina, e
opiáceos foram descobertas e utilizadas para fins medicinais “graças
ao grau de desenvolvimento da civilizada sociedade européia” (?) do
séc. XIX e XX, já que atingira seu estágio positivo segundo as leis do três
estados comteano, por outro lado, os efeitos (supostos) deletérios da Cannabis
naquela sociedade brasileira devem-se sem fundamento ao povo negro, porém o
cânhamo provém da Índia. Somos responsáveis pelos supostos malefícios e
olvidados nas descobertas.
Os dreads para além de uma de forma
apresentação é também uma afirmação da estética negra, e para o vereador
soteropolitano Silvio Humberto (PSB) “Quando
a pessoa faz isso só por deleite sem ver o sentido político do que significa
assumir seus dreads, ela tem até o direito, mas tem que arcar com as críticas.
A questão estética pra gente foi sempre utilizada como forma de enfrentar o
racismo. Mas é por meio da estética que somos excluídos. Algumas pessoas fazem
o uso pelo uso e não entendem que não é só uma questão estética, é política”[10].
Longe
de esgotar o debate em torno da apropriação cultural, se faz necessário pontuar
como o racismo se expressa em um primeiro momento para reprimir as
manifestações e identidades dos povos originários e afro-brasileiros, e
posteriormente utilizar dentro de uma lógica de exploração mercadológica
produtos materiais e imateriais daqueles, negando as origens étnicas e
culturais.
O
branco sabe o valor que o negro tem, toma banho de pixe, mas esconde a bacia
para ninguém saber. Mesmo assim, “... não
te ensino a minha malandragem, nem tão pouco minha filosofia, não? Quem dá luz
a cego é Bengala Branca e Santa Luzia”[11].
Axé
e resistência!
REFERÊNCIAS
ADIALA, J.C. O
Problema da Maconha no Brasil – Ensaio sobre Racismo e Drogas. Rio de Janeiro.
Instituto Universitário de Pesquisa. Série Estudos. N. 52, outubro 1983.
LAPLANTINE,
François. Aprender Antropologia.
Tradução de Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2005.
RIBEIRO, Stephanie: Afinal o que é apropriação
cultural?. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/stephanie-ribeiro-afinal-o-que-e-apropriacao-cultural/
SAAD,
Luísa Gonçalves . “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil (c.
1890-1932). Dissertação apresentada ao
Programa de Pós- Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. João José Reis, 2013.
[1] Franklim Peixinho é Advogado, Mestre
em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social pela Universidade Federal do
Recôncavo Baiano, professor de Direitos Humanos e Fundamentais da UNIFASS.
[2] Grupo étnico localizado na oeste-leste
da África subsaariana.
[3] CD Timabalada, Andei Road, 1996.
[4] CD Marisa Monte, Barulinho bom,
1996.
[5] CD Motumbá, Motumbá pra você,
2008.
[6] Autoridade do Candomblé zeladora
do Inkises, Orixás e Voduns.
[8] Baianas evangélicas rebatizam o
acarajé de “bolinho de Jesus”. Disponível em:
https://noticias.gospelprime.com.br/evangelicas-acaraje-bolinho-de-jesus/.
[9] Entidade feminina divina que
representa nosso planeta e a natureza
[10] Disponível em:
https://www.geledes.org.br/vereador-questiona-atriz-apos-uso-de-dreads-pra-ela-e-so-enfeite-pra-gente-nao/
[11] Trecho da canção “Que bloco é
esse”. Composição: Paulinho Camafeu
Excelente artigo, muito rico em informações com uma linguagem acessível para todos. Esta é uma obra que merece ser replicada e dissimina. Parabéns pelo excelente trabalho.
ResponderExcluirParabéns Franklin
ResponderExcluirExcelente artigo. Necessário recolocar, qualitativamente as contribuições do negro e dos ameríndios no epicentro deste caldeirão cultural norte-sul-centro americano. Queremos caminhar juntos e não ver nossas contribuições sendo apropriadas e subalternizadas.
Interessante o cruzamento entre apropriações colonias e o saber médico, a exemplo da Pacha Mama com seus simbolismos ancestrais e maternais para o povo ameríndio, mas que foi vilipendiada e transformada quimicamente em prol de interesses mercantis.
Parabenizo também pela sua importante contribuição, com a temática da drogadição, no Curso de formação e qualificação dos servidores penitenciarios