quinta-feira, 29 de novembro de 2018

APROPRIAÇÃO CULTURAL


Turbante, acarajé, folha de coca e dreads...

Por: Franklim Peixinho[1]

No universo da Axé Music quando “Dandalunda”, composta por Carlinhos Brown, estourou na voz de Margareth Menezes como hit do carnaval soteropolitano em 2002, a indústria de massa da música baiana demandou dos compositores canções nesse formato: duas estrofes, com um refrão apropriado de cânticos sagrados do Candomblé. “Dandalunda” é uma divindade da fertilidade no Candomblé de Nação Angola, etnicamente de origem banto[2], cujos Deuses são chamados de Inkises.

Brown em seu estilo de composição, sempre fez referência a elementos da cultura afro-brasileira – as canções “Fogo dos Ancestres”[3] e “Maraçá”[4] são exemplos disso – e tal como a rainha “Maga”, estes dois artistas negros têm fortes ligações culturais e religiosas com o “nagô” e “iurobá” jeito de ser do baiano “ancestralizado” da África. Não há problema algum em cantar, poetizar ou salmodiar elementos sacros do Candomblé, como os “Tincoãs” fizeram em seus belíssimos discos, sobretudo o de 1973, pela gravadora EMI-Odeon; e este que vos escreve também assim o fez, com a canção “Umbualana”[5], composta em parceria com Claudio Tavares, e gravada pelo grupo Motumbá em 2008 no Cd “Motumbá pra você”. 

A grande questão é quando a indústria de massa se apropria de elementos culturais e estéticos de matriz afro-brasileira e dos povos originários para exclusiva e fria lucratividade, sem a devida referência e retorno financeiro às comunidades de onde se usurpou os signos culturais. Aí relembro uma fala do professor Jaime Sodré, Ogan[6] da Casa Branca, em entrevista a TVE, questionando até que ponto tal apropriação é uma homenagem ou uma mera exploração comercial de um bem cultural de um povo.

Por outro lado, conceituar cultura é um trabalho exaustivo, na Antropologia  há 160 definições, mas utilizemos a noção de que cultura “engloba os modos comuns e aprendidos da vida, transmitidos pelos individuos e grupos, em sociedade” (LAPLANTINE, 2005).

Cultura, juridicamente, é um direito fundamental de segunda dimensão, inscrito no art. 215 da CF/88,  que demanda prestações positivas por meio de políticas públicas, com o fito na defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro, na proteção as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, na democratização do acesso aos bens de cultura, e a valorização da diversidade étnica e regional por meio do Plano Nacional de Cultura.

A apropriação cultural pela indústria, artistas e grupos difusos é uma temática que tem incomodado o movimento negro no Brasil, pois há ressignificações de mercado dos valores estéticos e culturais de matriz afro-brasileira e ameríndia, em face de uma cultura branca dominante que sempre se impôs como o parâmetro do belo e perfeito. Entretanto, adereços, musicalidade e até costumes e consumos afro-originário-brasileiros são incorporados no conjunto de produtos e serviços oferecidos pela sociedade de consumo, que nega ou olvida a origem étnica de tais símbolos e representações nas suas tratativas comerciais.

Também esta realidade – a apropriação cultural – não se restringe ao Brasil, pois a comunidade mexicana de Sant-Maria Tlahuitoltepec teve o seu tradicional bordado, comercializado e utilizado pela grife francesa Isabel Marant, sem qualquer referência a sua origem mexicana, apesar de mais de meio século de existência e fabricação desta indumentária por aquela comunidade (RIBEIRO, 2017). Caso semelhante, foram os coletes do vilarejo romeno de Beiuș e a grife francesa Dior que vendeu cada peça “... por 30 mil euros, mas as artesãs que produzem casacos do tipo há mais de cem anos não foram sequer citadas pela marca”[7].

Em nosso comezinho nicho político são diversas as questões apontadas como apropriação cultural, a começar pelo “bolinho de Jesus”[8] ou verdadeiramente o “Acarajé”, a comida de Yansã, Orixá feminino e guerreira, Deusa dos ventos e tempestades. Alguns evangélicos rebatizaram esta comida sagrada do Candomblé para negar as origens africanas deste alimento, em uma motivação pautada pela intolerância e racismo religioso. O rebatismo da comida de Oyá não logrou êxito diante da atuação da Associação das Baianas de Acarajé.

O tão polêmico uso do turbante por mulheres brancas é também alvo de contestação. A origem deste envoltório está nos panos de cabeça, chamado de torço ou “gèle”, utilizadas pelas mulheres yourubanas no Candomblé de Nação Ketu, mas não se restringe a esta linha candomblecista, pois há o uso em outras nações, como a Angola e Gege, e na Umbanda também; representa, ainda, pela forma de arrumação do “gèle”, o tempo de iniciação na religião e o Orixá ao qual o adepto é “filho”. A incorporação do turbante como peça de vestuário, vazia de significado étnico e religioso, torna-se problemático por reforçar concepções racistas ao negar ou invizibilizar a africanidade e afirmação política da negritude nesta indumentária.



Outro tipo de apropriação é o científico, com relação aos saberes tradicionais das populações originárias das Américas. A manipulação das “drogas da terra” e o domínio dos processos químicos pelos povos tradicionais foram, e ainda o são por meio de missões “científicas”, apreendidos, sorrateiramente, e deram azo, por exemplo, a sintetização da cocaína a partir da dádiva de Pacha Mama[9], a folha da coca, o que gerou grandes lucros ao laboratório alemão Bayer. Aqui no Brasil a disseminação do uso da cocaína, ópio e morfina eram os “vícios sociais elegantes” dos filhos da elite branca abastada do início do século XX, enquanto a sociose deselegante, o ópio do pobre, o fumo do negro, a diamba, ou simplesmente a maconha, era vingança do negro escravizado para com a sociedade brasileira, segundo o racialismo (pseudo) científico lombrosiano de Nina Rodrigues e Rodrigues Dória (ADIALA, 1983) (SAAD, 2013). Cocaína, morfina, e opiáceos foram descobertas e utilizadas para fins medicinais “graças ao grau de desenvolvimento da civilizada sociedade européia” (?) do séc. XIX e XX, já que atingira seu estágio positivo segundo as leis do três estados comteano, por outro lado, os efeitos (supostos) deletérios da Cannabis naquela sociedade brasileira devem-se sem fundamento ao povo negro, porém o cânhamo provém da Índia. Somos responsáveis pelos supostos malefícios e olvidados nas descobertas.

Os dreads para além de uma de forma apresentação é também uma afirmação da estética negra, e para o vereador soteropolitano Silvio Humberto (PSB) “Quando a pessoa faz isso só por deleite sem ver o sentido político do que significa assumir seus dreads, ela tem até o direito, mas tem que arcar com as críticas. A questão estética pra gente foi sempre utilizada como forma de enfrentar o racismo. Mas é por meio da estética que somos excluídos. Algumas pessoas fazem o uso pelo uso e não entendem que não é só uma questão estética, é política”[10].

Longe de esgotar o debate em torno da apropriação cultural, se faz necessário pontuar como o racismo se expressa em um primeiro momento para reprimir as manifestações e identidades dos povos originários e afro-brasileiros, e posteriormente utilizar dentro de uma lógica de exploração mercadológica produtos materiais e imateriais daqueles, negando as origens étnicas e culturais.

O branco sabe o valor que o negro tem, toma banho de pixe, mas esconde a bacia para ninguém saber. Mesmo assim, “... não te ensino a minha malandragem, nem tão pouco minha filosofia, não? Quem dá luz a cego é Bengala Branca e Santa Luzia”[11].

Axé e resistência!

REFERÊNCIAS

ADIALA, J.C. O Problema da Maconha no Brasil – Ensaio sobre Racismo e Drogas. Rio de Janeiro. Instituto Universitário de Pesquisa. Série Estudos. N. 52, outubro 1983.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. Tradução de Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2005.

 RIBEIRO, Stephanie: Afinal o que é apropriação cultural?. Disponível em: https://www.geledes.org.br/stephanie-ribeiro-afinal-o-que-e-apropriacao-cultural/

SAAD, Luísa Gonçalves . “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil (c. 1890-1932).  Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. João José Reis, 2013.



[1] Franklim Peixinho é Advogado, Mestre em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano, professor de Direitos Humanos e Fundamentais da UNIFASS.
[2] Grupo étnico localizado na oeste-leste da África subsaariana.
[3] CD Timabalada, Andei Road, 1996.
[4] CD Marisa Monte, Barulinho bom, 1996.
[5] CD Motumbá, Motumbá pra você, 2008.
[6] Autoridade do Candomblé zeladora do Inkises, Orixás e Voduns.
[8] Baianas evangélicas rebatizam o acarajé de “bolinho de Jesus”. Disponível em: https://noticias.gospelprime.com.br/evangelicas-acaraje-bolinho-de-jesus/.
[9] Entidade feminina divina que representa nosso planeta e a natureza
[10] Disponível em: https://www.geledes.org.br/vereador-questiona-atriz-apos-uso-de-dreads-pra-ela-e-so-enfeite-pra-gente-nao/
[11] Trecho da canção “Que bloco é esse”. Composição: Paulinho Camafeu

2 comentários:

  1. Excelente artigo, muito rico em informações com uma linguagem acessível para todos. Esta é uma obra que merece ser replicada e dissimina. Parabéns pelo excelente trabalho.

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  2. Parabéns Franklin
    Excelente artigo. Necessário recolocar, qualitativamente as contribuições do negro e dos ameríndios no epicentro deste caldeirão cultural norte-sul-centro americano. Queremos caminhar juntos e não ver nossas contribuições sendo apropriadas e subalternizadas.
    Interessante o cruzamento entre apropriações colonias e o saber médico, a exemplo da Pacha Mama com seus simbolismos ancestrais e maternais para o povo ameríndio, mas que foi vilipendiada e transformada quimicamente em prol de interesses mercantis.
    Parabenizo também pela sua importante contribuição, com a temática da drogadição, no Curso de formação e qualificação dos servidores penitenciarios

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