terça-feira, 18 de dezembro de 2018

INTERCEPTAÇÃO


É inválida a utilização da lei 9.296 na captação de mensagens trocadas pelo Blackberry Messenger?[1]

Por: Ivan Jezler Júnior[2]

 Vitor Paczek Machado[3]



1 INTRODUÇÃO 


Quando se reflete sobre o sentido jurídico de interceptação, atribui-se a noção de que algo está em movimento e é captado em tempo real, colhido instantaneamente durante o seu percurso. Essa característica podemos chamar de instantaneidade (STJ, HC 315.220/RS), como no caso em que as interceptações de ligações telefônicas e telemáticas são desviadas instantaneamente para o aparelho celular da polícia judiciária e armazenadas aqui no Brasil, mediante gravação, através do Sistema Guardião. Exclui-se desse rol de provas que são captadas instantaneamente as cartas trocadas e guardadas em casa, o que dá ensejo à busca e apreensão (art. 240, §1º, alínea ‘f do CPP).

Essa premissa nos fez refletir sobre a validade da obtenção de provas cautelares, especificamente conversas privadas trocadas pelo sistema BBM (Blackberry Messenger), indo além da discussão da necessidade (ou não) de cooperação internacional para tal desiderato. O ponto de discussão que nos chama atenção é outro, até então omisso, no tocante à validade da fundamentação das decisões que autorizam a medida cautelar em relação ao BBM com base na lei 9.296/96, implicando direitos fundamentais do sujeito passivo da constrição.

A pergunta deste artigo, portanto, é sobre a legalidade ou não da utilização da lei de interceptações telefônicas e telemáticas para captar conversas privadas trocadas via BBM; e a hipótese é de que a instantaneidade não permite tal aplicação, de forma a invalidar a fundamentação das decisões cautelares que a utilizam e implicar direitos fundamentais daqueles que foram submetidos à decisão.


2 CONVERSAS PRIVADAS (PROVAS) ARMAZENADAS E A QUESTÃO DA VALIDADE EM INTERCEPTAR-SE


Com a noção de interceptação e a exigência de instantaneidade, devemos indagar sobre a forma tecnológica do BBM e as implicações processuais daquela. Para isso, a primeira ideia-força é de que as conversas privadas por BBM são, além de criptografadas, mensagens armazenadas, as quais são disponibilizadas de forma rápida pela operadora RIM (Research in Motion). A tecnologia disponibilizada pelo serviço BBM é diferente das ligações telefônicas efetuadas, porque as conversas são protegidas, mediante criptografia de ponta a ponta, tanto do usuário que manda como do que recebe, incorporando camadas de segurança.([1]) A imagem explicativa quanto à tecnologia utilizada é a seguinte:



Nesse sentido, a obtenção de conversas privadas trocadas pela tecnologia BBM não será uma captação em ‘tempo real’, instantânea, justamente pela proteção da criptografia utilizada pela tecnologia, o que impede o desvio das mensagens durante o percurso e impõe a disponibilização de pacote de dados contendo um conjunto de mensagens à espera da quebra da criptografia, mediante fornecimento da chave pela subsidiária brasileira. Esse quadro operacional tecnológico é que impede a utilização da lei 9.296/96.

Processualmente falando, deve-se compreender que fatos antigos são verificados a partir das consequências e efeitos (Lopes Jr. fala em “interpretar os signos do passado, deixados no presente”), motivo pelo qual somente o presente se torna experimentável, sendo o passado provado; logo, é errado confundir desvio em tempo real com a captação de fatos antigos (dados eletrônicos criptografados), que são história e memória.([2]) Por isso que as mensagens de BBM não podem ser obtidas em ‘tempo real’; não se fala em ‘real’ quando estamos diante de um acesso ao passado, nos dados armazenados. O real só existe no presente. As mensagens armazenadas são dados passados, reconstruídos no presente, logo, no campo da memória. A única coisa que elas não possuem é ‘instantaneidade’.

Nesse quadro fático, pensamos que a obtenção de mensagens privadas trocadas via BBM é uma medida probatória submetida à reserva de jurisdição que deve ser fundamentada com base no art. 7º, inciso III da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e art. 240, §1º, alínea ‘h do CPP.

Por ora, entretanto, não se nega a necessidade quanto à construção de um Marco Processual Penal da Internet, com regras orientadoras fortes, com standards capazes de obstar o decisionismo e privilegiar uma jurisdição constitucional e convencional, como já afirmou Jezler Júnior.([3])

A Lei 12.965/2014 tem lacunas que devem ser preenchidas constitucionalmente até a edição de um Marco Processual Penal da Internet, com completude probatória, porque a CF/88 não é um “tigre sem dentes”; e seus mandados explícitos estão aí para preencherem algumas decisões materialmente desmotivadas, que estão sendo proferidas na coleta do conteúdo tecnológico estanque.

Considerando-se que a necessidade de ordem judicial para aceder a esses elementos probatórios se constitui num ponto de partida para as etapas de aquisição da prova eletrônica, são necessários requisitos e pressupostos, hipóteses de cabimento, legitimidade, competência e o acesso ao contraditório, especialmente pelo caráter volátil que engrandece os cuidados necessários à conservação desse material oculto.

Ao mesmo tempo, constata-se a importância de o processo penal usufruir dos recursos tecnológicos de investigação, os meios ocultos, sem amorfismos, considerando a impossibilidade de se alcançar uma verdade real digital. Uma realidade epistemologicamente alcançável, respeitando as regras do jogo.

Rememore-se que a motivação das decisões judiciais vincula o provimento judicial à estrita legalidade; daí porque tem-se relevância maior e instituição na Constituição com pena de nulidade diante do não cumprimento da medida. E não é preciso ir além para identificar a violação à legalidade estrita quando da imposição de fundamentação diversa da cabível no monitoramento. Além disso, o princípio da correlação é pressuposto para o exercício da jurisdição, de modo que a inobservância do objeto da medida com as razões do provimento (representados pela ideia de congruência narrativa e congruência normativa([4])) implica uma decisão nula ante a sua contradição.

Com essas premissas, a decisão judicial trará mais proteção à intimidade dos sujeitos passivos da medida, porque a busca e apreensão exige especificidade da medida e pré-compreensão do objeto a ser buscado, em contrapartida com a interceptação, que atinge todas as ligações efetuadas entre o alvo, de modo que o caráter vinculado da busca e apreensão tem uma eficácia limitada na interferência do direito à intimidade.([5])

            Daí porque se conclui que a utilização da lei 9.296/96 para fundamentar a obtenção de mensagens trocadas via BBM é inválida, na medida em que a decisão judicial é nula por vício de fundamentação, exatamente pelo fato de que não se pode interceptar (violação à noção de congruência narrativa e normativa). É o preço pago por vivermos em democracia.







[1] Texto publicado originalmente na edição de Outubro do IBCCRIM e devidamente autorizado pelos autores para sua republicação no BLOG DE DIREITO.
[2] Ivan Jezler Júnior é Advogado Criminalista, Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade Social Sul Americana (FASS – UNIFASS) e do CEJAS e na Pós-Graduação LFG.
[3] Vitor Pazek Machado é Advogado, Especialista e Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS.



Notas

([1])BBM Protected is designed to provide full end-to-end message encryption from the time a BBM Protected user sends a message to when the recipient receives the message. It incorporates three layers of security”. Disponível em: << http://ca.blackberry.com/enterprise/products/bbm-protected.html#get-started >>. Acesso em: 27 mar. 2018.
([2]) LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 374 e ss.
([3]) JEZLER JÚNIOR, Ivan. A “busca” por um Marco Processual Penal da Internet: requisitos para captação dos dados armazenados em compartimentos eletrônicos. 2018. 202f. Trabalho de conclusão de curso. (Mestrado em Ciências Criminais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. p. 37.
([4]) GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 195 e ss.
([5]) Nesse sentido, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que “os limites objetivos e subjetivos da busca e apreensão hão de estar no ato que a determine, discrepando, a mais não poder, da ordem jurídica em vigor delegar a extensão à autoridade policial” (STF, MS 23.454/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, TRIBUNAL PLENO, DJe 23/04/2001).

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