É
inválida a utilização da lei 9.296 na captação de mensagens trocadas pelo Blackberry
Messenger?[1]
Por:
Ivan Jezler Júnior[2]
Vitor Paczek Machado[3]
1
INTRODUÇÃO
Quando se reflete sobre
o sentido jurídico de interceptação, atribui-se a noção de que algo está em
movimento e é captado em tempo real, colhido instantaneamente durante o seu
percurso. Essa característica podemos chamar de instantaneidade (STJ, HC 315.220/RS), como no caso em que as
interceptações de ligações telefônicas e telemáticas são desviadas
instantaneamente para o aparelho celular da polícia judiciária e armazenadas
aqui no Brasil, mediante gravação, através do Sistema Guardião. Exclui-se desse
rol de provas que são captadas instantaneamente as cartas trocadas e guardadas
em casa, o que dá ensejo à busca e apreensão (art. 240, §1º, alínea ‘f’ do CPP).
Essa premissa nos fez
refletir sobre a validade da obtenção de provas cautelares, especificamente
conversas privadas trocadas pelo sistema BBM
(Blackberry Messenger), indo além da discussão da necessidade (ou não) de
cooperação internacional para tal desiderato. O ponto de discussão que nos
chama atenção é outro, até então omisso, no tocante à validade da fundamentação
das decisões que autorizam a medida cautelar em relação ao BBM com base na lei 9.296/96, implicando direitos fundamentais do
sujeito passivo da constrição.
A pergunta deste artigo,
portanto, é sobre a legalidade ou não da utilização da lei de interceptações
telefônicas e telemáticas para captar conversas privadas trocadas via BBM; e a hipótese é de que a instantaneidade
não permite tal aplicação, de forma a invalidar a fundamentação das decisões
cautelares que a utilizam e implicar direitos fundamentais daqueles que foram
submetidos à decisão.
2
CONVERSAS PRIVADAS (PROVAS) ARMAZENADAS E A QUESTÃO DA VALIDADE EM
INTERCEPTAR-SE
Com a noção de interceptação e a exigência de
instantaneidade, devemos indagar sobre a forma tecnológica do BBM e as implicações processuais
daquela. Para isso, a primeira ideia-força é de que as conversas privadas por BBM são, além de criptografadas,
mensagens armazenadas, as quais são disponibilizadas de forma rápida pela
operadora RIM (Research in Motion). A tecnologia disponibilizada pelo serviço BBM
é diferente das ligações telefônicas efetuadas, porque as conversas são
protegidas, mediante criptografia de ponta a ponta, tanto do usuário que manda
como do que recebe, incorporando camadas de segurança.([1])
A imagem explicativa quanto à tecnologia utilizada é a seguinte:
Nesse sentido, a obtenção de conversas privadas
trocadas pela tecnologia BBM não será
uma captação em ‘tempo real’, instantânea, justamente pela proteção da
criptografia utilizada pela tecnologia, o que impede o desvio das mensagens
durante o percurso e impõe a disponibilização de pacote de dados contendo um
conjunto de mensagens à espera da quebra da criptografia, mediante fornecimento
da chave pela subsidiária brasileira. Esse quadro operacional tecnológico é que
impede a utilização da lei 9.296/96.
Processualmente falando, deve-se compreender que
fatos antigos são verificados a partir das consequências e efeitos (Lopes Jr. fala em “interpretar os signos do passado, deixados no
presente”), motivo pelo qual somente o presente se torna experimentável,
sendo o passado provado; logo, é errado confundir desvio em tempo real com a
captação de fatos antigos (dados eletrônicos criptografados), que são história
e memória.([2])
Por isso que as mensagens de BBM não podem
ser obtidas em ‘tempo real’; não se fala em ‘real’ quando estamos diante
de um acesso ao passado, nos dados armazenados. O real só existe no presente.
As mensagens armazenadas são dados passados, reconstruídos no presente, logo,
no campo da memória. A única coisa que elas não possuem é ‘instantaneidade’.
Nesse quadro fático,
pensamos que a obtenção de mensagens privadas trocadas via BBM é uma medida probatória submetida à reserva de jurisdição que
deve ser fundamentada com base no art. 7º, inciso III da Lei 12.965/14 (Marco
Civil da Internet) e art. 240, §1º, alínea ‘h’ do CPP.
Por ora, entretanto,
não se nega a necessidade quanto à construção de um Marco Processual Penal da
Internet, com regras orientadoras fortes, com standards capazes de obstar o decisionismo e privilegiar uma
jurisdição constitucional e convencional, como já afirmou Jezler Júnior.([3])
A Lei 12.965/2014 tem
lacunas que devem ser preenchidas constitucionalmente até a edição de um Marco
Processual Penal da Internet, com completude probatória, porque a CF/88 não é
um “tigre sem dentes”; e seus mandados explícitos estão aí para preencherem
algumas decisões materialmente desmotivadas, que estão sendo proferidas na
coleta do conteúdo tecnológico estanque.
Considerando-se que a
necessidade de ordem judicial para aceder a esses elementos probatórios se
constitui num ponto de partida para as etapas de aquisição da prova eletrônica,
são necessários requisitos e pressupostos, hipóteses de cabimento,
legitimidade, competência e o acesso ao contraditório, especialmente pelo
caráter volátil que engrandece os cuidados necessários à conservação desse
material oculto.
Ao mesmo tempo,
constata-se a importância de o processo penal usufruir dos recursos
tecnológicos de investigação, os meios ocultos, sem amorfismos, considerando a
impossibilidade de se alcançar uma verdade real digital. Uma realidade epistemologicamente
alcançável, respeitando as regras do jogo.
Rememore-se que a
motivação das decisões judiciais vincula o provimento judicial à estrita
legalidade; daí porque tem-se relevância maior e instituição na Constituição
com pena de nulidade diante do não cumprimento da medida. E não é preciso ir
além para identificar a violação à legalidade estrita quando da imposição de
fundamentação diversa da cabível no monitoramento. Além disso, o princípio da
correlação é pressuposto para o exercício da jurisdição, de modo que a
inobservância do objeto da medida com as razões do provimento (representados
pela ideia de congruência narrativa e congruência normativa([4]))
implica uma decisão nula ante a sua contradição.
Com essas premissas, a
decisão judicial trará mais proteção à intimidade dos sujeitos passivos da
medida, porque a busca e apreensão exige especificidade da medida e
pré-compreensão do objeto a ser buscado, em contrapartida com a interceptação,
que atinge todas as ligações efetuadas entre o alvo, de modo que o caráter
vinculado da busca e apreensão tem uma eficácia limitada na interferência do
direito à intimidade.([5])
Daí
porque se conclui que a utilização da lei 9.296/96 para fundamentar a obtenção
de mensagens trocadas via BBM é
inválida, na medida em que a decisão judicial é nula por vício de
fundamentação, exatamente pelo fato de que não se pode interceptar (violação à
noção de congruência narrativa e normativa). É o preço pago por vivermos em
democracia.
[1] Texto publicado originalmente na
edição de Outubro do IBCCRIM e devidamente autorizado pelos autores para sua
republicação no BLOG DE DIREITO.
[2] Ivan Jezler Júnior é Advogado Criminalista, Mestre em Ciências
Criminais pela PUC-RS, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade
Social Sul Americana (FASS – UNIFASS) e do CEJAS e na Pós-Graduação LFG.
[3] Vitor Pazek Machado é Advogado, Especialista e Mestre em Ciências
Criminais pela PUC-RS.
([1]) “BBM Protected
is designed to provide full end-to-end message encryption from the time a BBM
Protected user sends a message to when the recipient receives the message. It
incorporates three layers of security”.
Disponível em: << http://ca.blackberry.com/enterprise/products/bbm-protected.html#get-started >>. Acesso em: 27 mar. 2018.
([3]) JEZLER JÚNIOR, Ivan. A “busca”
por um Marco Processual Penal da Internet: requisitos para captação dos dados
armazenados em compartimentos eletrônicos. 2018. 202f. Trabalho de conclusão de
curso. (Mestrado em Ciências Criminais) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. p. 37.
([5]) Nesse sentido,
o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que “os limites objetivos e subjetivos da busca e apreensão hão de estar no
ato que a determine, discrepando, a mais não poder, da ordem jurídica em vigor
delegar a extensão à autoridade policial” (STF, MS 23.454/DF, Rel. Min.
MARCO AURÉLIO, TRIBUNAL PLENO, DJe 23/04/2001).
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