terça-feira, 3 de setembro de 2013

Momento da Celebração do CASAMENTO

CONSENTIMENTO DOS NUBENTES 
OU DECLARAÇÃO DO JUIZ?
Prof.ª Paloma Braga Araújo de Souza[1]

O casamento é um vínculo jurídico que une duas pessoas[2] numa relação regulada pelo Direito de Família. Muito ainda se discute acerca da sua natureza jurídica, se de contrato, de instituição ou de ambos.

A teoria clássica é a contratualista, marcada pela forte influência individualista pós Revolução Francesa (por essa razão também chamada de teoria individualista). Embora o casamento civil já fosse admitido para os protestantes desde 1787 com o Édito de Tolerância, a Constituição francesa de 1791, querendo eliminar a forte conotação religiosa do matrimônio, afirma: La loi ne considère le mariage que comme contrat civil.[3]

Para essa teoria, pois, prevalece a natureza negocial do casamento, consubstanciada no consentimento indispensável à sua concretização. Assim, por exemplo, dizem Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:

Quando se entende o casamento como uma forma contratual, considera-se que o ato matrimonial, como todo e qualquer contrato, tem o seu núcleo existencial no consentimento, sem se olvidar, por óbvio, o seu especial regramento e consequentes peculiaridades.[4]

Para Maria Berenice Dias, para quem a discussão acerca da natureza jurídica do casamento se revela estéril e inútil, talvez, a ideia de negócio de direito de família seja a expressão que melhor sirva para diferenciar o casamento dos demais negócios de direito privado.” [5]

Para a teoria institucionalista, surgida em oposição à teoria clássica, o casamento é uma instituição social. Segundo Venosa, “O casamento faz com que os cônjuges adiram a uma estrutura jurídica cogente predisposta. Nesse sentido apresenta-se a conceituação institucional.[6] Ao lado desse argumento, os defensores da corrente institucionalista sustentam, ainda, a necessidade de uma autoridade pública para conferir aos nubentes o status de casados.

Assim como na dialética hegeliana, do embate das duas teorias, surge a terceira, denominada de teoria eclética ou mista. Nas palavras da professora, Martha Saad,

Na tentativa de conciliar as duas teorias principais, a teoria eclética ou mista considera o casamento como contrato em sua formação, pela imprescindibilidade do acordo de vontades, e instituição em sua duração, pela intervenção do poder público na fixação imperativa das regras e na celebração e pela inalterabilidade de seus efeitos. Para seus adeptos o casamento é um ato complexo.[7]

Com algumas variações, transitando entre a teoria clássica e a eclética, a grande maioria da doutrina parece concordar que o casamento é, enfim, um contrato especial de direito de família.

Delimitar a natureza jurídica do casamento é tarefa importante para se verificar em que momento os nubentes mudam o seu estado civil, em outras palavras, em que momento exato adquirem o status de casados.


Não há qualquer controvérsia acerca das formalidades que revestem a celebração do casamento. A inobservância delas, afora as hipóteses previstas na própria lei, torna o casamento inexistente, consoante entendimento doutrinário.[8] Mas diante de tantas formalidades, em que momento exatamente o vínculo conjugal é estabelecido?

Diz o art. 1.514 do Código Civil: O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

Uma primeira leitura do dispositivo leva a crer que o vínculo apenas se estabelece quando a autoridade celebrante declarar efetuado o casamento. Esse é o entendimento esposado, por exemplo, por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

Após áridas discussões doutrinárias, através das quais alguns optavam por entender existente no momento da declaração de vontade, enquanto outros exigiam a leitura da fórmula sacramental, foram dissipadas as dúvidas através da clarividência do art. 1.514 [...]. Optou, portanto, o direito positivo em reconhecer a existência do casamento no exato instante em que a autoridade promove a leitura da fórmula sacramental, declarando-os casados.[9]

Para Venosa, a redação do art. 1.514 não dissipou a controvérsia, embora realmente uma primeira interpretação exija o pronunciamento da autoridade celebrante.[10]

De acordo com o Código Civil, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento.[11] Ou seja, os atos ocorrem de forma sucessiva e imediata. Por que, então, o questionamento? Bem explica Venosa: A dúvida pode ter efeitos práticos, pois qualquer um dos circunstantes pode morrer nesse ínterim. É importante saber se morreram no estado de casados.[12]

Em que pese o relevo dos autores que não prescindem da declaração da autoridade celebrante, sendo o casamento um contrato de direito de família, como endossa a maioria da doutrina, a melhor exegese parece ser a que diz que ele se aperfeiçoa com o consentimento, tendo o pronunciamento estatal efeito meramente declaratório. Nesse sentido, Stolze e Pamplona prelecionam:

[...] é bom frisar que a concretização do ato matrimonial decorre do consentimento dos noivos, quando manifestam a vontade de se receberem reciprocamente, e não da chancela oficial do presidente do ato, de natureza simplesmente declaratória.
Expliquemos.
Ao consentirem, recebendo-se um ao outro como marido e mulher, os nubentes passam à condição de cônjuges, de maneira que a fórmula oficial dita pela autoridade celebrante, ‘declarando-os casados, na forma da lei’ não tem uma finalidade integrativa ou constitutiva do ato, mas tão somente declaratória da união conjugal.[13]

A reforçar o entendimento contrário, há o argumento da possibilidade de suspensão do casamento se algum dos contraentes se manifestar arrependido, como prevê o art. 1.538, III do diploma civil. Entretanto, seguindo a mesma linha de raciocínio, parece ser mais robusto o argumento pró momento do consentimento, uma vez que a mesma lei civil “admite o casamento sem a presença do celebrante no casamento nuncupativo e, da mesma forma, atribui efeitos civis ao casamento realizado perante autoridade eclesiástica.”[14]

Desse modo, considerando ser o casamento um contrato e considerando, ainda, que nem todas as formas de casamento exigem a presença de autoridade estatal como requisito de existência, uma segunda leitura do art. 1514 do Código Civil permite concluir que, de fato, o casamento se realiza no momento em que os nubentes manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal. O juiz apenas declara-os casados, tendo tal declaração efeito semelhante ao de uma homologação.


BIBLIOGRAFIA

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, volume 6: Direito das Famílias. 5 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2013.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 6: As famílias em perspectica constitucional. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 6: Direito de Família. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

SAAD, Martha Solange Scherer. A disputa entre as teorias que pretendem explicar a natureza jurídica do casamento in Artigos - F. de Direito da U. Presbiteriana Mackenzie, 2008. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/A_DISPUTA_ENTRE_TEORIAS__NATUREZA_JURIDICA_CASAMENTO-artigo-site-nov-2008.pdf>. Acesso em 28.08.2013.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2013




[1] Advogada, graduada pela UFBA, especialista em Direito do Estado pela Unyahna/Juspodivm, professora da Faculdade Apoio/Unifass e dos cursos Juspodivm e Só Concursos e Afins.

[2] Conforme art. 1° da Resolução 175/2013 do CNJ: É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
[3] Art. 7° da Constituição Francesa de 1791. Em tradução livre: A lei considera o casamento um contrato civil.
[4] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012. p. 117-118.
[5] DIAS, 2013. p. 157.
[6] VENOSA, 2013. p. 26.
[7] SAAD, 2008. Acesso em 28.08.2013
[8] Nesse sentido, VENOSA, 2013, p. 106 e GONÇALVES, 2012, p.140. Vale aqui destacar a opinião de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, que reputam exageradas as formalidades da celebração: Merece críticas a obsessão do legislador por exageradas solenidades na celebração do casamento. Com efeito, a vocação plural e aberta emprestada à família pela Carta Maior (art. 226, caput) é inconciliável com um apego exacerbado à solenidade nupcial que termina por dar a falsa ideia de uma superioridade jurídica (não existente no sistema constitucional) à família formada pelo matrimônio. In: FARIAS; ROSENVALD, 2013. p. 275.
[9] Op. Cit., p. 279. No mesmo sentido, DIAS, p. 169 e GONÇALVES, p.101.
[10] Op. Cit., p. 92.
[11] Art. 1.535
[12] Op. Cit., p. 92.
[13] Op. Cit., p.184.
[14] VENOSA, Ibidem, p.92

2 comentários:

  1. Muito bom o texto Professora. Parabéns. Confesso que esta sempre foi uma dúvida que tinha... O raciocínio quanto ao casamento é análogo ao da natureza jurídica do lançamento, se ele é constitutivo ou declaratório quanto a existência deste, prevalecendo o argumento de meio termo que indica ser o lançamento um instituto de eficácia dúplice: declaratório da obrigação e constitutivo do crédito dele decorrente.Por isso eu mantinha a dúvida: será que os civilistas tb arrumaram um argumento de meio-termo?

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  2. Obrigada, Prof. Milton!
    O meio termo ficou só na teoria eclética, acerca da natureza jurídica do casamento. No que diz respeito ao momento da celebração, a discussão é polarizada e eu, nesse caso, me filio à corrente minoritária.
    Abs,
    Paloma

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