OU DECLARAÇÃO DO JUIZ?
Prof.ª
Paloma Braga Araújo de Souza[1]
O
casamento é um vínculo jurídico que une duas pessoas[2]
numa relação regulada pelo Direito de Família. Muito ainda se discute acerca da
sua natureza jurídica, se de contrato, de instituição ou de ambos.
A
teoria clássica é a contratualista, marcada pela forte influência
individualista pós Revolução Francesa (por essa razão também chamada de teoria
individualista). Embora o casamento civil já fosse admitido para os
protestantes desde 1787 com o Édito de Tolerância, a Constituição francesa de
1791, querendo eliminar a forte conotação religiosa do matrimônio, afirma: La loi ne considère le mariage que comme
contrat civil.[3]
Para
essa teoria, pois, prevalece a natureza negocial do casamento, consubstanciada
no consentimento indispensável à sua concretização. Assim, por exemplo, dizem
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:
Quando se entende o casamento como uma
forma contratual, considera-se que o ato matrimonial, como todo e qualquer
contrato, tem o seu núcleo existencial no consentimento,
sem se olvidar, por óbvio, o seu especial regramento e consequentes
peculiaridades.[4]
Para
Maria Berenice Dias, para quem a discussão acerca da natureza jurídica do casamento
se revela estéril e inútil, “talvez, a ideia de negócio de direito de família seja a expressão que melhor sirva
para diferenciar o casamento dos demais negócios de direito privado.” [5]
Para
a teoria institucionalista, surgida em oposição à teoria clássica, o casamento
é uma instituição social. Segundo Venosa, “O
casamento faz com que os cônjuges adiram a uma estrutura jurídica cogente
predisposta. Nesse sentido apresenta-se a conceituação institucional.”[6]
Ao lado desse argumento, os defensores da corrente institucionalista sustentam,
ainda, a necessidade de uma autoridade pública para conferir aos nubentes o status de casados.
Assim
como na dialética hegeliana, do embate das duas teorias, surge a terceira,
denominada de teoria eclética ou mista. Nas palavras da professora, Martha
Saad,
Na tentativa de conciliar as duas
teorias principais, a teoria eclética ou mista considera o casamento como
contrato em sua formação, pela imprescindibilidade do acordo de vontades, e instituição
em sua duração, pela intervenção do poder público na fixação imperativa das
regras e na celebração e pela inalterabilidade de seus efeitos. Para seus
adeptos o casamento é um ato complexo.[7]
Com
algumas variações, transitando entre a teoria clássica e a eclética, a grande
maioria da doutrina parece concordar que o casamento é, enfim, um contrato
especial de direito de família.
Delimitar
a natureza jurídica do casamento é tarefa importante para se verificar em que
momento os nubentes mudam o seu estado civil, em outras palavras, em que
momento exato adquirem o status de
casados.
Não
há qualquer controvérsia acerca das formalidades que revestem a celebração do
casamento. A inobservância delas, afora as hipóteses previstas na própria lei,
torna o casamento inexistente, consoante entendimento doutrinário.[8]
Mas diante de tantas formalidades, em que momento exatamente o vínculo conjugal
é estabelecido?
Diz o
art. 1.514 do Código Civil: O casamento se realiza no momento em que o
homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer
vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.
Uma
primeira leitura do dispositivo leva a crer que o vínculo apenas se estabelece
quando a autoridade celebrante declarar efetuado o casamento. Esse é o
entendimento esposado, por exemplo, por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
Após áridas discussões doutrinárias,
através das quais alguns optavam por entender existente no momento da declaração
de vontade, enquanto outros exigiam a leitura da fórmula sacramental, foram
dissipadas as dúvidas através da clarividência do art. 1.514 [...]. Optou,
portanto, o direito positivo em reconhecer a existência do casamento no exato
instante em que a autoridade promove a leitura da fórmula sacramental,
declarando-os casados.[9]
Para
Venosa, a redação do art. 1.514 não dissipou a controvérsia, embora realmente
uma primeira interpretação exija o pronunciamento da autoridade celebrante.[10]
De
acordo com o Código Civil, o presidente
do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e
espontânea vontade, declarará efetuado o casamento.[11]
Ou seja, os atos ocorrem de forma sucessiva e imediata. Por que, então, o
questionamento? Bem explica Venosa: A
dúvida pode ter efeitos práticos, pois qualquer um dos circunstantes pode
morrer nesse ínterim. É importante saber se morreram no estado de casados.[12]
Em
que pese o relevo dos autores que não prescindem da declaração da autoridade
celebrante, sendo o casamento um contrato
de direito de família, como endossa a maioria da doutrina, a melhor exegese
parece ser a que diz que ele se aperfeiçoa com o consentimento, tendo o
pronunciamento estatal efeito meramente declaratório. Nesse sentido, Stolze e
Pamplona prelecionam:
[...] é bom frisar que a concretização
do ato matrimonial decorre do consentimento
dos noivos, quando manifestam a vontade de se receberem reciprocamente, e não da chancela oficial do presidente do
ato, de natureza simplesmente declaratória.
Expliquemos.
Ao consentirem, recebendo-se um ao outro
como marido e mulher, os nubentes passam à condição de cônjuges, de maneira que
a fórmula oficial dita pela autoridade celebrante, ‘declarando-os casados, na
forma da lei’ não tem uma finalidade integrativa ou constitutiva do ato, mas
tão somente declaratória da união conjugal.[13]
A
reforçar o entendimento contrário, há o argumento da possibilidade de suspensão
do casamento se algum dos contraentes se manifestar arrependido, como prevê o
art. 1.538, III do diploma civil. Entretanto, seguindo a mesma linha de
raciocínio, parece ser mais robusto o argumento pró momento do consentimento,
uma vez que a mesma lei civil “admite o
casamento sem a presença do celebrante no casamento nuncupativo e, da mesma
forma, atribui efeitos civis ao casamento realizado perante autoridade
eclesiástica.”[14]
Desse
modo, considerando ser o casamento um contrato e considerando, ainda, que nem
todas as formas de casamento exigem a presença de autoridade estatal como
requisito de existência, uma segunda leitura do art. 1514 do Código Civil
permite concluir que, de fato, o casamento se realiza no momento em que os
nubentes manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo
conjugal. O juiz apenas declara-os casados, tendo tal declaração efeito
semelhante ao de uma homologação.
BIBLIOGRAFIA
DIAS,
Maria Berenice. Manual de Direito das
Famílias. 9 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013.
FARIAS,
Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso
de Direito Civil, volume 6: Direito das Famílias. 5 ed. rev., atual. e
ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2013.
GAGLIANO,
Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo
Curso de Direito Civil, volume 6: As famílias em perspectica
constitucional. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.
GONÇALVES,
Carlos Roberto. Direito Civil
Brasileiro, volume 6: Direito de Família. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SAAD,
Martha Solange Scherer. A disputa entre
as teorias que pretendem explicar a natureza jurídica do casamento in
Artigos - F. de Direito da U. Presbiteriana Mackenzie, 2008. Disponível em:
<http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/A_DISPUTA_ENTRE_TEORIAS__NATUREZA_JURIDICA_CASAMENTO-artigo-site-nov-2008.pdf>.
Acesso em 28.08.2013.
VENOSA,
Silvio de Salvo. Direito Civil:
Direito de Família. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2013
[1] Advogada,
graduada pela UFBA, especialista em Direito do Estado pela Unyahna/Juspodivm,
professora da Faculdade Apoio/Unifass e dos cursos Juspodivm e Só Concursos e
Afins.
[2] Conforme art. 1° da Resolução
175/2013 do CNJ: É vedada às autoridades
competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de
conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
[3] Art. 7° da Constituição Francesa
de 1791. Em tradução livre: A lei considera o casamento um contrato civil.
[4] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012.
p. 117-118.
[5] DIAS, 2013. p. 157.
[6] VENOSA, 2013. p. 26.
[7] SAAD, 2008. Acesso em 28.08.2013
[8] Nesse sentido, VENOSA, 2013, p.
106 e GONÇALVES, 2012, p.140. Vale aqui destacar a opinião de Cristiano Chaves
e Nelson Rosenvald, que reputam exageradas as formalidades da celebração: Merece críticas a obsessão do legislador por
exageradas solenidades na celebração do casamento. Com efeito, a vocação plural
e aberta emprestada à família pela Carta Maior (art. 226, caput) é inconciliável com um apego exacerbado à
solenidade nupcial que termina por dar a falsa ideia de uma superioridade
jurídica (não existente no sistema constitucional) à família formada pelo
matrimônio. In: FARIAS; ROSENVALD, 2013. p. 275.
[9] Op. Cit., p. 279. No mesmo
sentido, DIAS, p. 169 e GONÇALVES, p.101.
[10]
Op. Cit., p. 92.
[11]
Art. 1.535
[12] Op. Cit., p. 92.
[13] Op. Cit., p.184.
[14] VENOSA, Ibidem, p.92
Muito bom o texto Professora. Parabéns. Confesso que esta sempre foi uma dúvida que tinha... O raciocínio quanto ao casamento é análogo ao da natureza jurídica do lançamento, se ele é constitutivo ou declaratório quanto a existência deste, prevalecendo o argumento de meio termo que indica ser o lançamento um instituto de eficácia dúplice: declaratório da obrigação e constitutivo do crédito dele decorrente.Por isso eu mantinha a dúvida: será que os civilistas tb arrumaram um argumento de meio-termo?
ResponderExcluirObrigada, Prof. Milton!
ResponderExcluirO meio termo ficou só na teoria eclética, acerca da natureza jurídica do casamento. No que diz respeito ao momento da celebração, a discussão é polarizada e eu, nesse caso, me filio à corrente minoritária.
Abs,
Paloma