segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A HERMENÊUTICA RESPONDE - 08


Se mendigos não pagam impostos,
desempregados devem pagar?
Prof. Milton Vasconcellos[1]

Cediço é que mendigos não pagam impostos, afinal não tem como pagar. Considerando pois o motivo utilizado aos mendigos, uma pessoa desempregada fundado no mesmo argumento pode esquivar-se das obrigações tributárias?
Apesar do inusitado do questionamento feito, mais uma vez a tentativa de resposta enseja ótima oportunidade de discussão sobre aspectos da interpretação aplicáveis em matéria tributária, propiciando aquilo que considero de “Hermenêutica Aplicada”.

Inicialmente, deve-se atentar ao fato que com o advento do Texto Constitucional de 1988, percebe-se que o fenômeno tributário deixa de ser apenas uma manifestação de poder do Estado que impõe o tributo sem quaisquer limites, para alcançar uma realidade onde a tributação é vista como uma relação jurídica, onde cada parte tem respectivos direitos e deveres a cumprir (MACHADO, 2008, p. 59). Assim não sendo apenas uma expressão de poder, a tributação passa a ser concebida como uma possibilidade para o Ente Federado, possibilidade esta circunscrita aos limites trazidos pela lei.


Entenda-se aqui “lei” em um sentido lato, vez que os limites ao poder de tributar tem alçada constitucional e manifestam-se de várias formas. Considerando contudo a temática e questionamento proposto no título deste texto, direciona-se a abordagem a um tipo de limitação específica, os princípios tributários constitucionais.

Um destes limites é o princípio da capacidade contributiva, previsto no parágrafo primeiro do art. 145 da Constituição Federal que estabelece que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”, tal previsão normativa expressa  a possibilidade concreta e real de aptidão de determinada pessoa de pagar tributos depois de considerados suas condições pessoais de pagamento, em outras palavras, a possibilidade que cada um tem de contribuir para as despesas da coletividade de acordo com a presunção de riqueza que possui.
 

Art. 145 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

[...]

§  - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. (BRASIL, 1988)

Do texto citado, destaca-se a expressão “capacidade econômica”, indicada como parâmetro para a gradação da tributação. Acerca de tal dispositivo, há de destacar a distinção entre o texto normativo e norma jurídica no caso ora em tela. Texto normativo reflete a própria lei ou o ordenamento em potência, enquanto a norma jurídica é o resultado da interpretação feita pelo intérprete (GRAU, 2009, p. 28).

Dessa forma, apesar do texto normativo indicar a capacidade econômica, em verdade, afirma a doutrina que o Constituinte incorreu em equívoco, devendo-se portanto extrair o sentido e alcance deste texto normativo em consonância com os objetivos sociais pretendidos e não apenas mera densidade econômica capaz de suportar a tributação (MARTINS, 1989, p. 34). Logo, a luz de tal texto normativo, extrai-se como norma jurídica a capacidade contributiva e não apenas econômica do contribuinte.

Outro aspecto importante de valoração deste texto normativo diz respeito à palavra “impostos” citada pelo Constituinte no caput do artigo levando ao questionamento se o aludido princípio aplica-se apenas as impostos ou às demais espécies tributárias? Para tanto é desprezada a interpretação literal para adotar-se uma interpretação sistemática de forma a alcançar o sentido da palavra como “tributos em geral” e não apenas uma espécie, os impostos. Logo, todas as demais espécies tributárias devem se sujeitar à limitação trazida pelo princípio da capacidade contributiva e levar em contar a efetiva possibilidade de pagamento do contribuinte como um limite ao poder de tributar dos entes federados.

Sob o prisma hermenêutico a noção de capacidade contributiva na tributação é resultado do trabalho da interpretação sistemática do tributo enquanto direito do Estado, pois se por um lado é inequívoco o direito dos entes federativos de tributar dentro da competência outorgada pela Constituição Federal, por outro lado, ao se mensurar o art. 3, I, da Carta Política que indica como um dos objetivos da República a construção de uma  sociedade não só livre mas também justa e solidária, não se pode concluir de forma diferente de que numa sociedade justa e solidária apenas devem pagar tributos aqueles que tenham algum tipo de capacidade contributiva.

Volta-se então ao questionamento inicial que enseja todo o texto acerca de mendigos e desempregados, afinal se mendigos não pagam tributos porque desempregados devem fazê-lo se não possuem renda para contribuir?

Ademais, agrava-se a indagação quando se percebe que o Código Tributário Nacional em suas disposições sugere uma interpretação econômica do fato gerador do tributo, ao conferir ao intérprete a possibilidade de privilegiar, quando da aplicação das regras sobre incidência tributária, o conteúdo econômico dos atos ou negócios jurídicos, em detrimento de seus aspectos formais, consoante se identifica a luz do que estabelece o art. 118, CTN:


Art. 118 - A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo- se:

I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;

II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos. (BRASIL, 1966, p. 134)

A disposição normativa citada traz importante regra de interpretação da tributação, ao afastar todas as questões formais do fato gerador privilegiando assim a compreensão do fato gerador enquanto uma realidade econômica devendo sempre legitimar a obrigação de pagar o tributo desde que ocorra subsunção entre a conduta praticada e o fato gerador previsto na lei.

Poderíamos então concluir de que “dura Lex sed Lex” mendigos e desempregados devem todos pagar tributos?

Não, pois a realidade destes indivíduos são distintas quando considerada a capacidade econômica.

Para elucidar alcançar tal resposta cumpre trazer a distinção entre a capacidade econômica (prevista no parágrafo segundo do art. 145, CF) e a capacidade contributiva que dá nome a um dos princípios tributários que norteia e limita o Poder de tributação do Estado.

Nesse sentido, a doutrina considera capacidade econômica como:

[...] é a exteriorização da potencialidade econômica de uma pessoa em razão de seus rendimentos, independente de sua vinculação ao referido poder. É a aptidão dos indivíduos em obter riquezas, sendo que estas se expressarão através de sua renda, do consumo ou do seu patrimônio. Portanto, tem capacidade econômica todo aquele indivíduo que disponha de alguma riqueza ou de aptidão para obtê-la, de uma forma geral.  (MARTINS, 1989, p. 35)


Por outro lado, a capacidade contributiva “é a capacidade do contribuinte relacionada com a imposição do ônus tributário. É a dimensão econômica particular da vinculação do contribuinte ao poder tributante, ao Estado, de forma geral” (MARTINS, 1989, p. 35).

A partir de tais distinções é possível afirmar que o desempregado, apesar de não dispor temporariamente de renda isso não significa dizer que não possua capacidade econômica, representada pelo seu patrimônio. Tome-se como exemplo bens como automóveis, imóveis que são tributados normalmente ainda que seu proprietário esteja desempregado. O mendigo, a seu turno, não dispõe nem de poder de pagamento, tampouco de patrimônio, sendo portanto desprovido de ambas capacidades a econômica e a contributiva.

Para além do argumento doutrinário já apresentado, há de se afastar o apego excessivo ao formalismo para que se compreenda que as regras jurídicas não são um fim em si mesmas, elas existem tão somente porque as pessoas existem antes delas, motivo pelo qual a existência da lei tem sua razão de ser nas pessoas e não o oposto.

Por tal razão, ao valorar a aplicação da lei deve o intérprete sempre buscar por meio da interpretação teleológica os fins sociais desta, conforme determina o art. 5 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, permitindo-se assim que o desempregado pague tributo face sua capacidade econômica mas o mendigo não, face sua gritante ausência de capacidade contributiva.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, Lei 5172 de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Lex: Coletânea de Legislação e Jurisprudência, São Paulo, v. 48, jan./mar.,1. trim. 1985. Legislação Federal e marginalia.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2008.
Martins, Ives Gandra da Silva. Capacidade Contributiva. Caderno de Pesquisas Tributárias Vol. 14 São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1989.




[1] Prof. Milton Vasconcellos é Advogado, Especialista em Direito Público (FABAC), Professor de Hermenêutica, Direito Tributário e Direito Penal da Faculdade Apoio Unifass.

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