quinta-feira, 19 de setembro de 2013

ACONTECEU NA PROVA DE PENAL IV:

A POLÊMICA DA QUESTÃO 9

Prof. Milton Vasconcellos[1]

Aplicada na última quarta feira (18/09/13), a avaliação de Direito Penal IV trouxe duas questões subjetivas, das quais a questão de no. 9 trazia o seguinte teor:

10 - João penalmente responsável, mediante ameaça de arma de fogo, constrangeu José, de dezoito anos, a se despir em sua frente, de modo a satisfazer sua lascívia. Após José despir-se, João masturbou-se e evadiu-se do local, sendo porém interceptado pela polícia que o prendeu por estupro consumado qualificado pelo uso da arma de fogo.
É Correta a tipificação feita pelo policial?

Trocando em miúdos, a automasturbação é fato idôneo para fins de tipificação dos atos libidinosos e consequente crime de estupro?

Das muitas respostas realizadas, identifiquei um número muito grande de estudantes que responderam ser correta a tipificação feita pelo policial haja vista que o texto normativo do art. 213, CP trazer a expressão “ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinosoconstante do texto de lei que negritei abaixo:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Destaque-se desde já que a resposta ao questionamento feito nos parágrafos anteriores não pode ser conhecida de forma objetiva, haja vista que apenas o caso concreto pode dar subsídios para a correta valoração e alcance da resposta se há ou não relevância penal. Isso ocorre pois o direito Penal orienta-se a tutelar bens jurídicos, logo a depender do bem jurídico tutelado, o legislador cria tipos penais distintos a proteger bens que entende mais caros à sociedade.

Logo a conduta de masturbar-se pode ou não ser um fato típico penal a depender das inúmeras circunstâncias que a cercam.
 
Feito tal introito e tomando-se como parâmetro as circunstâncias trazidas pelo enunciado da questão de prova aplicada e citada logo no início do texto é que se desenvolve os argumentos que seguem.

Antes mesmo de enfrentar o mérito da questão citada, cumpre identificar a inexistência da qualificadora de portar arma de fogo para o crime de estupro, logo equivocada a tipificação e tal fundamentação já satisfaria ao comando exigido na pergunta. Alguns contudo, talvez por optarem pela resposta afirmativa ao questionamento, ponderaram o trecho negritado para justificar suas respostas, as quais contudo não lograram êxito.

Confesso contudo desde já, que o trecho negritado é confuso e mal escrito, por isso dá azo a tantas confusões, mas por outro lado, paradoxalmente, celebro tais trechos pois sob uma perspectiva pedagógica ao menos, permitem discussões e por consequência a melhor aprendizagem do conteúdo da matéria por nós todos.

Dito isto, observe-se assim que o tipo inicia com o verbo “constranger”, a conduta típica portanto subsume-se em crime de estupro quando o agente, valendo-se de violência ou grave ameaça, constrange alguém a ter conjunção carnal (sexo com penetração falo-vaginal) ou atos libidinosos (demais comportamentos de natureza sexual). Este último comportamento contudo é que se liga ao trecho negritado, haja vista que o texto de lei fala em “praticar o ato libidinoso” (conduta ativa perante a vítima) ou a permitir que com ele (o agressor) se pratique tais atos libidinosos (conduta passiva do agressor).

Tomando-se como exemplo a questão de prova citada, apenas haveria subsunção ao tipo de estupro se o agente João tivesse constrangido José a o masturbar, fato este que não aconteceu.

Destaque-se ainda que o legislador faz uso do pronome pessoal “ele”, estabelecendo clara intenção de vincular a conduta ao agressor e não à vítima, nesta última hipótese ele teria de ter optado pelo pronome “ela”, por regras comezinhas de concordância nominal.

Sob um prisma hermenêutico, tais argumentos ganham força face a regra de que “a lei não contém frase ou palavra inútil, supérflua ou sem efeito, razão pelo qual a opção pelo pronome pessoal no masculino (e não no feminino) não pode ser desconsiderada, assumindo ao contrário regra útil e determinante para a compreensão do texto normativo e toda a discussão aqui proposta.

Por fim, valorando-se ainda a conduta de João identifica-se no texto que o agente pratica a “automasturbação”, ou seja masturbou-se apenas, sem sequer tocar em José. O fato é relevante face ao amplo conceito de “atos libidinosos”, compreendido pela doutrina e que pode ensejar algum tipo de confusão, pois o fato de se masturbar pode ser considerado um ato libidinoso?

Se valorada por um prisma puramente semântico, a libido é considerada sinônimo de desejo sexual, sendo portanto atos libidinosos atos voltados à satisfação destes desejos. Neste sentido a própria conjunção canal também poderia ser considerada um ato libidinoso pois sabe-se que, para muito além da reprodução o sexo proporciona prazer para ambos. Compreendendo contudo este termo a luz do direito, há de se levar em conta que as disposições legais anteriores à lei 12.015/09 imputavam a conduta da prática dos atos libidinosos a outro tipo penal o atentado violento ao pudor (atualmente revogado), indicando tal conduta como “ato libidinoso diverso da conjunção canal”.

Assim, prevaleceu até então na doutrina a ideia de que tais atos libidinosos teriam noção subsidiária à conjunção carnal, sendo compreendidos portanto como “Ato voluptuoso, lascivo, que tem finalidade de satisfazer o prazer sexual, tais como o sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução na vagina dos dedos ou outros objetos, dentre outros” (NUCCI, 2013, p. 946).

Observa-se, assim, que do ponto de vista doutrinário a conduta de masturbar-se se enquadra na noção de atos libidinosos, porém mostra-se pacificado na jurisprudência a ideia de que tais condutas libidinosas devem representar uma invasão da individualidade física da pessoa ofendida, exigindo-se assim o contato físico mínimo, sendo considerada a automasturbação sem ocorrência efetiva de coito ou seus sucedâneos ato inidôneo para caracterizar a conduta como crime.

Nesse sentido indica jurisprudência consoante citado:

[...] Crime cometido mediante violência ficta, que não trouxe maiores consequências para a vítima, limitando-se a leve e efêmero contato corporal ou automasturbação, sem ocorrência de coito ou demais atos sexuais correlatos. Parcial provimento para fixar o regime semi-aberto. (Apelação Criminal com revisão ACR 990080878808 – SP, TJ/SP, 25/02/2009

Dessa forma a compreensão meramente semântica da automasturbação como ato libidinoso mostra-se inapropriada e tem fundamento tão somente quando considerado apenas seu significado (sentido semântico). Porém mostra-se cediço que a interpretação literal é a mais pobre das formas de se interpretar, permitindo ao máximo apenas o início da compreensão normativa.

Dessa forma, atendendo ao questionamento proposto na avaliação de Penal IV, bastaria ao estudante indicar e justificar como incorreta a tipificação, sendo considerado o ato narrado na questão um indiferente penal quanto ao crime de estupro, a relevância penal que existe estaria restrita a outros bens jurídicos tutelados como por exemplo o crime de constrangimento ilegal.

Nesse sentido, oportuna mais uma vez a doutrina uma vez que o mesmo autor citado traz entendimento complementar à citação anterior:

Se alguém, mediante ameaça com arma de fogo, obriga a vítima a se despir em sua frente, o que lhe confere prazer sexual, não está cometendo crime de estupro, e sim constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do CP: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda(NUCCI, 2009, p. 22)

Para além dos que pontuaram a questão, creio que todos fomos vitoriosos com esta arguição feita na prova, mostrando que, ao contrário de ser uma punição, as avaliações apresentam fabuloso instrumento de aprendizagem, do qual – confesso – todos ainda não sabemos explorar suas potencialidades da forma devida.


REFERÊNCIAS

BRASIL.  Decreto-Lei 2848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Lex: Coletânea de Legislação e Jurisprudência, São Paulo, v. 48,  jan./mar.,1. trim. 1984. Legislação Federal e marginalia;

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009. São Paulo: Editora RT, 2010

______. Código Penal Comentado. 11ª. ed, São Paulo: Editora RT, 2012




[1] Prof. Milton Vasconcellos é Advogado, Especialista em Direito Público (FABAC), Professor de Hermenêutica, Direito Tributário e Direito Penal da Faculdade Apoio Unifass.

17 comentários:

  1. Prof. Querido apesar de não ter pontuado a referida questão, o que me fez aprender mais a respeito dos crimes contra a dignidade sexual e suas nuances, trago que em questões práticas; hodiernamente, tem se que, os policiais, tanto em ronda quanto em delegacias, não apuram o fato delitivo no momento, razão pela qual, em detrimento ao indivíduo autuado em flagrante, imputa-se o tipo penal mais próximo aos relatos da vítima, o que acarreta muitas vezes em injustas ações penais, até se verificar o tipo penal correto.

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    1. Querida Mye.. no final o que importa é só isso mesmo, aprender, né verdade? ;)

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  2. Prof. Queridíssimo então fica caracterizado por ser ato libidinoso quando há o contato físico?
    Venho a crer que o reparo do abalo psicológico é tão mais difícil, ou até irreparável, quanto o físico.
    Acredito que a questão subjetiva vai depender muito da subsunção dos fatos que foram narrados, questionamentos devem ser feitos. Como foi essa automasturbação? O quanto a vítima foi constrangida? Quais métodos o agente ativo utilizou para alcançar o êxtase da sua libido? Questionamentos como esses deveriam ser invocados na aplicação do caso concreto.
    Não sou doutrinador nem jurista mas como cidadão considero SIM a automasturbação questionada na prova como ato libidinoso.

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    1. Querido Daniel,

      Todas suas perguntas são pertinentes e decisivamente influenciam na definição de uma resposta. Observe que, por isso mesmo fiz questão de inserir no texto que:

      "Destaque-se desde já que a resposta ao questionamento feito nos parágrafos anteriores não pode ser conhecida de forma objetiva, haja vista que apenas o caso concreto pode dar subsídios para a correta valoração e alcance da resposta se há ou não relevância penal. Isso ocorre pois o direito Penal orienta-se a tutelar bens jurídicos, logo a depender do bem jurídico tutelado, o legislador cria tipos penais distintos a proteger bens que entende mais caros à sociedade.

      Logo a conduta de masturbar-se pode ou não ser um fato típico penal a depender das inúmeras circunstâncias que a cercam"

      Observe portanto que, PARA O CASO PROPOSTO NA QUESTÃO, a aludida auto-masturbação não foi ato idôneo no sentido de caracterizar ato libidinoso para fins de imputação de crime de estupro, percebe?

      Parabéns pelo questionamento. Avancemos!

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    2. Na verdade, não concordo com o pensamento do colega Daniel, no aspecto de "O reparo do abalo psicológico é tão mais difícil, ou até irreparável, quanto o físico."
      Existem atualmente diversos profissionais em inúmeras áreas que estudam e qualificam-se exclusivamente em métodos de tratamento para qualquer tipo de abalo psicológico, porém o físico é dificilmente superado, visto que trata-se de um dano permanente ou temporário recebido na matéria da pessoa, e a sua visualização será motivo de "regressões memoriais". Não significa que a simples superação subjetiva psicológica extinguirá o dano causado.
      E a oração de qualificar-se apenas como cidadão sem a nomenclatura de jurista ou doutrinador, notavelmente espelha o senso comum da maioria das pessoas que ignoram o modo como as normas regem-se no sistema jurídico brasileiro, partindo-lhes do juízo de valor equivocado para julgar os fatos cotidianos com a sua ânsia de justiça, sem a correta base legal, quase que como uma primitiva pena de talião.

      L. Fernandez

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    3. Muito bem vinda querida! Obrigado por expressar e dividir conosco sua opinião!

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  3. Creio que o meliante pode ser enquadrado no artigo 217-A caput combinado com o paragrafo primeiro. Praticar ato libidinoso com alguém que não possa oferecer resistência.
    Damu Majid.

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    1. Nesse caso Damu, todo e qualquer crime praticado com arma de fogo seria estupro de vulnerável, percebe? Faz-se necessário, além da vulnerabilidade do sujeito passivo valorar a conduta e o bem jurídico protegido. Nesse caso não há estupro, pelos motivos já trazidos no texto.

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  4. Entendo que Libido é o desejo sexual e que, ato libidinoso é todo ato de satisfação da libido, satisfação do desejo ou apetite sexual da pessoa. Os atos libidinosos mais comuns são o beijo lascivo como também o coito anal a conjunção carnal e a masturbação. Não só estes, mas todo e qualquer ato humano realizado com o fim de satisfazer ao desejo sexual, realizado isoladamente ou em relação à outra pessoa. Acho que isso foi o que chamou a atenção de todos para o "estupro" na questão. Realizar ações com objetos que imitem ou não o corpo ou partes do corpo humano, igualmente, pode constituir ato libidinoso. Entendo que coagir alguém a satisfazer o seu desejo sexual por meio de ameaça que neste caso é grave, já se daria atos libidinosos que cabe o art. 213 CP, mais como já foi citado antes pelo Profº Milton que o x da questão a qual não me atentei era a tipificação do policial em relação ao uso da arma de fogo, neste caso se daria o art. 146 CP o qual já foi citado.

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    1. Deve-se atentar para diferença do significado semântico da palavra para o significado jurídico Beatriz. Note que, num sentido puramente semântico até a conjunção carnal é ato libidinoso. Contudo num sentido jurídico os conceitos não se confundem. Assim, a valoração da conduta do agente para perfeita subsunção deve atentar para TODO O TIPO penal, haja vista regra de hermenêutica que destaca não existir palavras inúteis na lei. Nesse sentido é que a palavra "atos libidinosos" ganha seus contornos e significado sempre levando em conta o caso em concreto.

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  5. Como eu concordei, vide resposta na prova, com as explicações do Mestre Milton, não tenho muito a acrescentar, porém, vale ressaltar que não podemos ser tão subjetivos, como os coleas Daniel e Damu, na interpretação de leis penais ou incorreremos no risco de tipificar como ato libidinoso, com permissão da palavra, soltar peido em via pública....rsrsrsrs...

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    1. Exato Darthagnan.. veda-se a interpretação extensiva aos tipos penais , face ao princípio da legalidade penal insculpido no art. 1, CP

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  6. Concordo que o crime de estupro não tipifica a conduta em questão, afinal a automasturbação não é considerado ato libidinoso e como também não houve conjunção carnal, descartado está o estupro. Portanto, nota-se que não se enquadra em nenhum dos tipos penais dos crimes contra Dignidade Sexual, tipificando o crime do art. 146, Constrangimento Ilegal.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Não poderá ocorrer em crime de estrupo tipificado a conduta do agente, apenas haveria subsunção ao tipo de estupro se o agente João tivesse constrangido José a o masturbar, fato este que não aconteceu. Portanto não enquadraremos nos tipos penais.

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  9. Prezado Professor,

    Analisando novamente o caso em questão, observo que não houve crime de estupro consumado, qualificado pelo uso de arma de fogo pois, o art. 213. do CP, não tipifica a conduta do agente nesse caso concreto considerando não ter havido conjunção carnal nem ato libidinoso com a vítima, conforme diz o referido art. 213 do CP. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Portanto, podemos falar aqui de qualquer outro tipo de crime menos de estupro.

    Ednaldo Rosa Alves

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