terça-feira, 3 de março de 2015

#JurisprudênciaComentada:


Seguro DPVAT e Abortamento

Por: Paloma Braga[1]

Hoje vamos comentar uma decisão recente do STJ. À baila, direitos da personalidade e responsabilidade civil.

Vamos ver o relatório do acórdão:

Graciane (...) ajuizou ação de cobrança de seguro obrigatório em face da Seguradora Líder dos Consórcios do Seguro DPVAT S.A. A autora noticiou ter sofrido acidente automobilístico que lhe causou várias lesões corporais e do qual resultou a morte do marido e a interrupção de sua gravidez - óbito fetal. Em razão da perda do nascituro de aproximadamente 4 (quatro) meses, requereu o pagamento do seguro DPVAT correspondente à indenização por morte, nos termos do que dispõe o art. 3º, caput e inciso I, da Lei n.6194/1974.[2]

É sabido que pela teoria natalista abraçada por nosso Código Civil, a personalidade só começa do nascimento com vida, mas não podemos esquecer que a lei põe a salvo desde a concepção, os direitos do nascituro. Tanto assim o é, que o aborto ainda é criminalizado, as gestantes gozam de atendimento prioritário e a lei já reconhece o direito à percepção dos alimentos gravídicos. Então, reconhecemos direitos ao nascituro, sem que ele tenha, ainda, personalidade jurídica[3].

No presente caso, a autora obteve êxito na primeira instância, mas a sentença foi reformada no segundo grau e chegou ao STJ através de recurso especial. O TJSC negou o pagamento da indenização a Graciane, sob o argumento de que o Código Civil só reconhece ao nascituro a titularidade de diretos personalíssimos, havendo quanto aos direitos patrimoniais apenas mera expectativa.

A questão que se põe, portanto, diz respeito à natureza da indenização pleiteada e se há, in casu, a legitimidade para recebê-la.

O seguro de pessoas é um contrato aleatório, no qual, ocorrendo o evento morte do segurado (sinistro), o beneficiário da indenização é um terceiro que não participou da relação jurídica contratual (estipulação em favor de terceiro). No Brasil, o seguro DPVAT é obrigatório para todos os proprietários de veículos automotores e tem por escopo indenizar quaisquer vítimas de acidentes de trânsito. Ocorre que, assim como nos demais seguros de vida, se há a morte do segurado, a indenização, por óbvio, não é devida à vítima, mas sim aos seus familiares e/ou beneficiários. Desse modo, não se sustenta o argumento trazido pelo Tribunal catarinense, vez que não se trata de direito patrimonial do nascituro (vítima), mas de compensação a seus familiares, de acordo com o que dispõe o art. 792 do Código Civil:

Art. 792. Na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem da vocação hereditária.

O que interessa verificar no caso, portanto, é se o abortamento do feto de quatro meses pode ser considerado como evento morte, apto a configurar hipótese de incidência da norma prevista no art. 3°, I da Lei n.° 6194/74, que dispõe sobre o seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre.

Esta controvérsia foi bem compreendida pelo tribunal superior, se não, vejamos:

[...] se bem compreendida a controvérsia, não busca a autora "direitos patrimoniais" do nascituro, como se tais direitos devessem, antes, ter sido transmitidos por herança à autora. Em outras palavras, não se está a vindicar direito sucessório - originariamente do nascituro -, mas direito próprio da genitora ao recebimento da indenização do seguro obrigatório DPVAT.

Pois bem. Pode o nascituro ser considerado pessoa no presente caso? A solução adotada pelo STJ é interessante e pode se tornar paradigma, uma vez que o ilustre ministro relator abordou com profundidade as teorias que versam sobre os direitos do nascituro, defendendo uma distinção entre existência da pessoa e a aquisição da personalidade.

Para o Min. Luis Felipe Salomão, “o Código Civil de 2002, mesmo em sua literalidade, não baralha os conceitos de ‘existência da pessoa’ e de ‘aquisição da personalidade jurídica’.”

Vale transcrever sua fundamentação:

Nesse sentido, o art. 2º, ao afirmar que a "personalidade civil da pessoa começa com o nascimento", logicamente abraça uma premissa insofismável: a de que "personalidade civil" e pessoa não caminham umbilicalmente juntas. Isso porque, pela construção legal, é apenas em um dado momento da existência da pessoa que se tem por iniciada sua personalidade jurídica, qual seja, o nascimento. Donde se conclui que, antes disso, se não se pode falar em personalidade jurídica – segundo o rigor da literalidade do preceito legal –, é possível, sim, falar-se em pessoa. Caso contrário, não se vislumbraria nenhum sentido lógico na fórmula "a personalidade civil da pessoa começa", se ambas – pessoa e personalidade civil – tivessem como começo o mesmo acontecimento.

Com efeito, quando a lei pretendeu estabelecer a "existência da pessoa", o fez expressamente. É o caso do art. 6º, o qual assere que "[a] existência da pessoa natural termina com a morte", e do art. 45, caput, segundo o qual "[c]omeça a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro". Tal circunstância torna eloquente o silêncio da lei quanto à "existência da pessoa natural", a qual, se por um lado não há uma afirmação expressa de quando se inicia, por outro lado não se pode considerar como iniciada tão somente com o nascimento com vida.

Portanto, extraem-se conclusões que afastam a ideia de que só pessoas titularizam direitos e de que a existência da pessoa natural só se inicia com o nascimento.

Porém, segundo penso, a principal conclusão é a de que, se a existência da pessoa natural tem início antes do nascimento, nascituro deve mesmo ser considerado pessoa, e, portanto, sujeito de direito, uma vez que, por força do art. 1º, "[t]oda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil".

Na mesma linha de que o nascituro é, verdadeiramente, uma pessoa, o art. 1.798 do Código Civil prevê a legitimação para suceder não só das "pessoas nascidas", mas também das pessoas "já concebidas no momento da abertura da sucessão".

Desse modo, entendido o nascituro como pessoa, ainda que sem personalidade, a sua mãe faz jus a indenização por morte do seguro DPVAT, devida em razão do sinistro.





[1] Paloma Braga é Advogada, Mestranda em Direito pela UFBA, Especialista em Direito do Estado pelo Juspodivm / Unyahna. Professora de Direito Civil da Faculdade Apoio Unifass.

[2] REsp 1415727/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/09/2014, DJe 29/09/2014.
[3] Para FIÚZA, o nascituro é sujeito de direitos sem personalidade. Segundo ele, “A tese teve berço na lavra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior e foi desenvolvida pelo professor mineiro, Cláudio Henrique Ribeiro da Silva. E, na verdade, como o ovo de Colombo, é muito simples, podendo ser exposta em poucas linhas. Começa por fazer a distinção entre pessoas e sujeitos de direitos. Toda pessoa é sujeito de direitos, mas nem todo sujeito de direitos é pessoa. Há casos em que o ordenamento jurídico atribui direitos a entes despidos de personalidade, como o nascituro e a herança jacente, sem lhes atribuir personalidade. São, pois, sujeitos de direitos sem personalidade. Essa é, sem dúvida, a melhor tese para solucionar o problema criado pela atribuição de direitos a entes não personificados. São sujeitos sem personalidades.” FIUZA, César Augusto de Castro. Teoria filosófico-dogmática dos sujeitos de direito sem personalidade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 100, n. 914, p. 75-93, dez. 2011.

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