Por: Paloma Braga[1]
Hoje
vamos comentar uma decisão recente do STJ. À baila, direitos da personalidade e
responsabilidade civil.
Vamos
ver o relatório do acórdão:
Graciane
(...) ajuizou ação de cobrança de seguro obrigatório em face da Seguradora
Líder dos Consórcios do Seguro DPVAT S.A. A autora noticiou ter sofrido acidente
automobilístico que lhe causou várias lesões corporais e do qual resultou a morte
do marido e a interrupção de sua gravidez - óbito fetal. Em razão da perda do
nascituro de aproximadamente 4 (quatro) meses, requereu o pagamento do seguro
DPVAT correspondente à indenização por morte, nos termos do que dispõe o art.
3º, caput e inciso I, da Lei n.6194/1974.[2]
É sabido que pela teoria
natalista abraçada por nosso Código Civil, a personalidade só começa do
nascimento com vida, mas não podemos esquecer que a lei põe a salvo desde a
concepção, os direitos do nascituro. Tanto assim o é, que o aborto ainda é
criminalizado, as gestantes gozam de atendimento prioritário e a lei já
reconhece o direito à percepção dos alimentos
gravídicos. Então, reconhecemos direitos ao nascituro, sem que ele tenha,
ainda, personalidade jurídica[3].
No presente caso, a
autora obteve êxito na primeira instância, mas a sentença foi reformada no
segundo grau e chegou ao STJ através de recurso especial. O TJSC negou o
pagamento da indenização a Graciane, sob o argumento de que o Código Civil só
reconhece ao nascituro a titularidade de diretos personalíssimos, havendo
quanto aos direitos patrimoniais apenas mera expectativa.
A questão que se põe,
portanto, diz respeito à natureza da indenização pleiteada e se há, in casu, a legitimidade para recebê-la.
O seguro de pessoas é um contrato
aleatório, no qual, ocorrendo o evento morte do segurado (sinistro), o
beneficiário da indenização é um terceiro que não participou da relação
jurídica contratual (estipulação em favor de terceiro). No Brasil, o seguro
DPVAT é obrigatório para todos os proprietários de veículos automotores e tem
por escopo indenizar quaisquer vítimas de acidentes de trânsito. Ocorre que,
assim como nos demais seguros de vida, se há a morte do segurado, a
indenização, por óbvio, não é devida à vítima, mas sim aos seus familiares e/ou
beneficiários. Desse modo, não se sustenta o argumento trazido pelo Tribunal
catarinense, vez que não se trata de direito patrimonial do nascituro (vítima),
mas de compensação a seus familiares, de acordo com o que dispõe o art. 792 do
Código Civil:
Art.
792. Na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo
não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao
cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado,
obedecida a ordem da vocação hereditária.
O que interessa verificar no caso, portanto, é se o abortamento do feto de quatro meses pode ser considerado como evento morte, apto a configurar hipótese de incidência da norma prevista no art. 3°, I da Lei n.° 6194/74, que dispõe sobre o seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre.
Esta controvérsia foi bem
compreendida pelo tribunal superior, se não, vejamos:
[...]
se bem compreendida a controvérsia, não busca a autora
"direitos patrimoniais" do nascituro, como se tais direitos
devessem, antes, ter sido transmitidos por herança à autora. Em outras
palavras, não se está a vindicar direito sucessório - originariamente do
nascituro -, mas direito próprio da genitora ao recebimento da indenização do
seguro obrigatório DPVAT.
Pois bem. Pode o nascituro ser considerado pessoa no presente caso? A solução adotada pelo STJ é interessante e pode se tornar paradigma, uma vez que o ilustre ministro relator abordou com profundidade as teorias que versam sobre os direitos do nascituro, defendendo uma distinção entre existência da pessoa e a aquisição da personalidade.
Para o Min. Luis Felipe
Salomão, “o Código Civil de 2002, mesmo em sua literalidade, não baralha
os conceitos de ‘existência da pessoa’ e de ‘aquisição da personalidade
jurídica’.”
Vale transcrever sua
fundamentação:
Nesse
sentido, o art. 2º, ao afirmar que a "personalidade civil da
pessoa começa com o nascimento", logicamente abraça uma premissa
insofismável: a de que "personalidade civil" e pessoa não
caminham umbilicalmente juntas. Isso porque, pela construção legal, é
apenas em um dado momento da existência da pessoa que se tem por iniciada
sua personalidade jurídica, qual seja, o nascimento. Donde se conclui que,
antes disso, se não se pode falar em personalidade jurídica – segundo o
rigor da literalidade do preceito legal –, é possível, sim, falar-se em
pessoa. Caso contrário, não se vislumbraria nenhum sentido lógico na
fórmula "a personalidade civil da pessoa começa", se ambas
– pessoa e personalidade civil – tivessem como começo o mesmo
acontecimento.
Com
efeito, quando a lei pretendeu estabelecer a "existência da pessoa",
o fez expressamente. É o caso do art. 6º, o qual assere que
"[a] existência da pessoa natural termina com a
morte", e do art. 45, caput,
segundo o qual "[c]omeça a existência legal das pessoas
jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no
respectivo registro". Tal circunstância torna eloquente o silêncio da
lei quanto à "existência da pessoa natural", a qual,
se por um lado não há uma afirmação expressa de quando se inicia,
por outro lado não se pode considerar como iniciada tão somente com o
nascimento com vida.
Portanto,
extraem-se conclusões que afastam a ideia de que só pessoas titularizam
direitos e de que a existência da pessoa natural só se inicia com o nascimento.
Porém,
segundo penso, a principal conclusão é a de que, se a existência da pessoa
natural tem início antes do nascimento, nascituro deve mesmo ser
considerado pessoa, e, portanto, sujeito de direito, uma vez que, por
força do art. 1º, "[t]oda pessoa é capaz de direitos e deveres na
ordem civil".
Na
mesma linha de que o nascituro é, verdadeiramente, uma pessoa, o
art. 1.798 do Código Civil prevê a legitimação para suceder não só das
"pessoas nascidas", mas também das pessoas "já concebidas
no momento da abertura da sucessão".
Desse modo, entendido o
nascituro como pessoa, ainda que sem personalidade, a sua mãe faz jus a
indenização por morte do seguro DPVAT, devida em razão do sinistro.
[1] Paloma Braga é Advogada, Mestranda
em Direito pela UFBA, Especialista em Direito do Estado pelo Juspodivm /
Unyahna. Professora de Direito Civil da Faculdade Apoio Unifass.
[2] REsp 1415727/SC, Rel. Ministro
LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/09/2014, DJe 29/09/2014.
[3] Para FIÚZA, o nascituro é sujeito
de direitos sem personalidade. Segundo ele, “A tese teve berço na lavra de
Tércio Sampaio Ferraz Júnior e foi desenvolvida pelo professor mineiro, Cláudio
Henrique Ribeiro da Silva. E, na verdade, como o ovo de Colombo, é muito
simples, podendo ser exposta em poucas linhas. Começa por fazer a distinção
entre pessoas e sujeitos de direitos. Toda pessoa é sujeito de direitos, mas
nem todo sujeito de direitos é pessoa. Há casos em que o ordenamento jurídico
atribui direitos a entes despidos de personalidade, como o nascituro e a
herança jacente, sem lhes atribuir personalidade. São, pois, sujeitos de
direitos sem personalidade. Essa é, sem dúvida, a melhor tese para solucionar o
problema criado pela atribuição de direitos a entes não personificados. São
sujeitos sem personalidades.” FIUZA, César Augusto de Castro. Teoria
filosófico-dogmática dos sujeitos de direito sem personalidade. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 100, n. 914, p. 75-93, dez. 2011.
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