quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

TRIBUTAÇÃO, DESIGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL


Tributação, desigualdades e
justiça social

Por: Prof. Mário Bastos[1]

O sistema tributário brasileiro evidentemente tem um caráter de valorizar a clássica tributação sobre ao patrimônio, ao invés de se orientar pela tributação contributiva sobre a renda. Uma tributação contributiva sobre a renda, nos parece, atenderia melhor a uma ideal distributivo de renda que seria uma importante ferramenta para redução de desigualdades sociais no modelo de estado de bem estar social previsto pela constituição federal brasileira. Todavia, não é isso que se percebe.

O que se dá é que o nosso código tributário nacional vigente remonta aos idos de 1966, durante o período de recrudescimento do regime militar que vitimou a democracia brasileira por mais de duas décadas. Com a constituição de 1988 os paradigmas das políticas do novo modelo de estado de bem estar social mudaram significativamente. Os paradigmas de que tratamos levam em consideração uma pretensão de garantia plena de direitos civis e fundamentais e de promoção da defesa dos direitos humanos orientada acima de tudo pelo constante, frequente e progressivo valor da dignidade humana.

Ocorre que após a promulgação da nova carta magna o STF entendeu por recepcionar o código tributário de 1966 ao novo ordenamento jurídico em sua integridade. Uma série de fatores contribuiu para isso. Podemos apontar alguns.

O primeiro diz respeito à dificuldade em se desmontar uma intricada e complexa máquina estatal que, considerando os interesses dos entes federativos, exigiria extremo comprometimento e abnegação que, lamentavelmente, não se encontrava dentre as prioridades dos poderes instituídos no período de transição da ditadura para a democracia. A preocupação era a boa velha garantia da “governabilidade”. Alterar o sistema tributário nacional implicaria em interceder nas relações de poder entre união, estados, distrito federal e município e seus contribuintes. Em suma, ninguém queria abrir de sua fatia orçamentária garantida pela tributação.

Também é possível compreender que, alterar um sistema tributário tão complexo quanto o brasileiro exigiria um esforço hercúleo por parte de juristas e magistrados. Sem dúvida haveria um longo período de conflitos judiciais até que o novo sistema tributário se conformasse no terreno da nova estrutura estatal brasileira. Em suma se exigiria muita dedicação, habilidade mas principalmente, efetivo interesse democrático que, como se explica pelo terceiro motivo à seguir, dificilmente se apresentaria espontaneamente pela vontade dos integrantes dos poderes legislativo, executivo e judiciário e demais instituições políticas, na época da transição para a democracia.

 O terceiro motivo não é outro senão uma garantia de controle de um instrumento de poder que favorece plenamente à manutenção do clássico modelo de sistemas representativos exclusivistas, que, na prática, historicamente, mantém uma elite no poder em detrimento e prejuízo de uma democracia participativa. Em outras palavras: garante que os poderosos se mantenham no poder e que a política siga sendo encarada como uma atividade para mentes privilegiadas, pensamento que, evidentemente, apenas favorece à perpetuação do modelo que resiste à participação progressiva da população nos assuntos públicos.

Independentemente de toda uma série de relevantes motivos para que se promovesse a alteração do sistema tributário que melhor se conformasse ao estado de bem estar social de direitos e democracia participativa promovidos pela constituição de 1988, não há dúvida que a manutenção de um sistema tributário que em sua essência era incompatível com o novo estado de direitos que se inaugurava produziu uma série de desconformidades sistêmicas no plano da relação entre tributação, orçamento, financiamento de políticas públicas em consonância com as premissas constitucionais, e, principalmente, entre contribuinte e administração fazendária. O resultado concreto foram atos públicos (legislativos e executivos) que frequentemente afrontavam a Constituição federal tanto em forma, quanto em substância, demandando uma constante interferência do judiciário e de judicialização de questões eminentemente políticas e administrativas que atravancam qualquer possibilidade de solução de problemas estruturais e desenvolvimento econômico e - o que é mais importante - social do país.

Não restam dúvidas que o estado de bem estar social se vê comprometido pela simples incapacidade dos governos de constituírem suas políticas com base em um modelo tributário que verdadeiramente leve em conta o princípio da capacidade contributiva. O que se desenvolve, em resposta, é um complexo emaranhado tributário que onera principalmente as cadeias de consumo e, consequentemente, achaca progressivamente os contribuintes com menor renda e capacidade contributiva. Paralelamente, os interesses de grupos políticos que não observam ao interesse público genuíno e se orientam principalmente pela necessidade de manutenção no poder interferem na apropriada dotação orçamentária para a implementação de políticas públicas em conformidade com as determinações constitucionais.

Assim, o preço tributário pago pela manutenção do estado de bem estar social – que reconhecidamente é significativamente elevado – não se reverte da forma devida ao contribuinte, o que induz de uma lado a uma dupla oneração, na medida em que o cidadão se vê forçado a pagar por serviços básicos essenciais que obrigatoriamente deveriam ser providos de maneira eficaz pelo estado de bem estar social; de outro lado, quando o cidadão se encontra em situação de extrema vulnerabilidade econômica e social sendo mesmo incapaz de se onerar para além da contraprestação tributária, o que se verifica é um sistema que contribui para a ampliação das desigualdades sociais e que efetivamente favorece à exploração do capital sobre o indivíduo.

Considerando que a tributação é – ou ao menos deve ser, no intuito de minimizar e afastar a influência do capital privado na representação e exercício do poder governamental que deve ser essencialmente público em suas razões e motivações – elemento essencial para a garantia de dotação orçamentária de um Estado e principal instrumento para o financiamento da própria razão de ser deste mesmo Estado, é evidente que a ora proposta desconformidade estrutural e teórica do sistema tributário brasileiro com o modelo de estado de bem estar social é de relevante gravidade. Lançando mão de conhecida metáfora, na medida em que um Estado é um corpo, a Constituição sua mente, e o Governo seu coração, a tributação é o sangue que corre por toda essa estrutura e garante a sua viabilidade.

Não se trata apenas de tratar problemas contingentes como necessidade de simplificação e modernização tanto de normas jurídicas quanto de procedimentos administrativos de um sistema extremamente rígido e burocratizado que progressivamente oprime o contribuinte; ou como da necessidade de utilização apropriada de recursos orçamentários na implementação de políticas públicas; ou de eventuais – e cada vez menos frequentes - dificuldades de arrecadação. Todos esses são problemas que, nos parece, dizem muito mais respeito a ações de governo do que a disposições de Estado e que, muito por isso, podem ser presentes em qualquer Estado do mundo, seja ela democrático, ou não, de bem estar social, ou não.

A reforma do sistema tributário brasileiro é algo que deve levar em consideração uma análise profunda dos modelos de estado ao qual este deve servir, colocando-se, assim, em consonância efetiva com mesmo, desde os seus princípios, passando por uma estruturação que considere acima de tudo o princípio maior da capacidade contributiva do contribuinte. Desde a sua tributação, como em todas as suas práticas, o Estado de bem estar social deve garantir a progressiva redução das desigualdades econômicas e sociais.

O estado de bem estar social, em suma, vê sua implementação severamente comprometida desde o princípio por um sistema tributário que carece de conformidade com os próprios ideais constitucionais entabulados pela carta magna. Não se trata apenas de atualizar normas jurídicas ou aprimorar a máquina administrativa tributária. É preciso uma mudança de perspectiva e consequente de paradigmas. Ou melhor, é preciso apenas que se oriente pelas perspectivas já expostas na Constituição de 1988 que, em síntese, afirma que aquele que produz mais riquezas, deve contribuir mais do que aquele que detém menos. A reforma do sistema tributário brasileiro é assim, antes de mais nada, uma necessidade ideológica de uma necessária e cada mais premente adequação teórica entre meios e fins.





[1] Mário Bastos é Advogado militante, Mestrando em Filosofia pela UFBA, Pós graduado em Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA, além de Professor da Faculdade APOIO UNIFASS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário