Tributação, desigualdades e
justiça social
Por: Prof. Mário Bastos[1]
O sistema tributário brasileiro evidentemente
tem um caráter de valorizar a clássica tributação sobre ao patrimônio, ao invés
de se orientar pela tributação contributiva sobre a renda. Uma tributação
contributiva sobre a renda, nos parece, atenderia melhor a uma ideal
distributivo de renda que seria uma importante ferramenta para redução de
desigualdades sociais no modelo de estado de bem estar social previsto pela
constituição federal brasileira. Todavia, não é isso que se percebe.
O que se dá é que o nosso código tributário
nacional vigente remonta aos idos de 1966, durante o período de recrudescimento
do regime militar que vitimou a democracia brasileira por mais de duas décadas.
Com a constituição de 1988 os paradigmas das políticas do novo modelo de estado
de bem estar social mudaram significativamente. Os paradigmas de que tratamos
levam em consideração uma pretensão de garantia plena de direitos civis e
fundamentais e de promoção da defesa dos direitos humanos orientada acima de
tudo pelo constante, frequente e progressivo valor da dignidade humana.
Ocorre que após a promulgação da nova carta
magna o STF entendeu por recepcionar o código tributário de 1966 ao novo
ordenamento jurídico em sua integridade. Uma série de fatores contribuiu para
isso. Podemos apontar alguns.
O primeiro diz respeito à dificuldade em se
desmontar uma intricada e complexa máquina estatal que, considerando os
interesses dos entes federativos, exigiria extremo comprometimento e abnegação
que, lamentavelmente, não se encontrava dentre as prioridades dos poderes
instituídos no período de transição da ditadura para a democracia. A
preocupação era a boa velha garantia da “governabilidade”. Alterar o sistema
tributário nacional implicaria em interceder nas relações de poder entre união,
estados, distrito federal e município e seus contribuintes. Em suma, ninguém
queria abrir de sua fatia orçamentária garantida pela tributação.
Também é possível compreender que, alterar um
sistema tributário tão complexo quanto o brasileiro exigiria um esforço
hercúleo por parte de juristas e magistrados. Sem dúvida haveria um longo
período de conflitos judiciais até que o novo sistema tributário se conformasse
no terreno da nova estrutura estatal brasileira. Em suma se exigiria muita
dedicação, habilidade mas principalmente, efetivo interesse democrático que,
como se explica pelo terceiro motivo à seguir, dificilmente se apresentaria
espontaneamente pela vontade dos integrantes dos poderes legislativo, executivo
e judiciário e demais instituições políticas, na época da transição para a
democracia.
O
terceiro motivo não é outro senão uma garantia de controle de um instrumento de
poder que favorece plenamente à manutenção do clássico modelo de sistemas
representativos exclusivistas, que, na prática, historicamente, mantém uma
elite no poder em detrimento e prejuízo de uma democracia participativa. Em
outras palavras: garante que os poderosos se mantenham no poder e que a
política siga sendo encarada como uma atividade para mentes privilegiadas,
pensamento que, evidentemente, apenas favorece à perpetuação do modelo que
resiste à participação progressiva da população nos assuntos públicos.
Independentemente de toda uma série de
relevantes motivos para que se promovesse a alteração do sistema tributário que
melhor se conformasse ao estado de bem estar social de direitos e democracia
participativa promovidos pela constituição de 1988, não há dúvida que a
manutenção de um sistema tributário que em sua essência era incompatível com o
novo estado de direitos que se inaugurava produziu uma série de
desconformidades sistêmicas no plano da relação entre tributação, orçamento,
financiamento de políticas públicas em consonância com as premissas constitucionais,
e, principalmente, entre contribuinte e administração fazendária. O resultado
concreto foram atos públicos (legislativos e executivos) que frequentemente
afrontavam a Constituição federal tanto em forma, quanto em substância,
demandando uma constante interferência do judiciário e de judicialização de
questões eminentemente políticas e administrativas que atravancam qualquer
possibilidade de solução de problemas estruturais e desenvolvimento econômico e
- o que é mais importante - social do país.
Não restam dúvidas que o estado de bem estar
social se vê comprometido pela simples incapacidade dos governos de
constituírem suas políticas com base em um modelo tributário que
verdadeiramente leve em conta o princípio da capacidade contributiva. O que se
desenvolve, em resposta, é um complexo emaranhado tributário que onera
principalmente as cadeias de consumo e, consequentemente, achaca
progressivamente os contribuintes com menor renda e capacidade contributiva.
Paralelamente, os interesses de grupos políticos que não observam ao interesse
público genuíno e se orientam principalmente pela necessidade de manutenção no
poder interferem na apropriada dotação orçamentária para a implementação de
políticas públicas em conformidade com as determinações constitucionais.
Assim, o preço tributário pago pela
manutenção do estado de bem estar social – que reconhecidamente é
significativamente elevado – não se reverte da forma devida ao contribuinte, o
que induz de uma lado a uma dupla oneração, na medida em que o cidadão se vê
forçado a pagar por serviços básicos essenciais que obrigatoriamente deveriam
ser providos de maneira eficaz pelo estado de bem estar social; de outro lado,
quando o cidadão se encontra em situação de extrema vulnerabilidade econômica e
social sendo mesmo incapaz de se onerar para além da contraprestação
tributária, o que se verifica é um sistema que contribui para a ampliação das
desigualdades sociais e que efetivamente favorece à exploração do capital sobre
o indivíduo.
Considerando que a tributação é – ou ao menos
deve ser, no intuito de minimizar e afastar a influência do capital privado na
representação e exercício do poder governamental que deve ser essencialmente
público em suas razões e motivações – elemento essencial para a garantia de
dotação orçamentária de um Estado e principal instrumento para o financiamento
da própria razão de ser deste mesmo Estado, é evidente que a ora proposta
desconformidade estrutural e teórica do sistema tributário brasileiro com o
modelo de estado de bem estar social é de relevante gravidade. Lançando mão de
conhecida metáfora, na medida em que um Estado é um corpo, a Constituição sua
mente, e o Governo seu coração, a tributação é o sangue que corre por toda essa
estrutura e garante a sua viabilidade.
Não se trata apenas de tratar problemas
contingentes como necessidade de simplificação e modernização tanto de normas
jurídicas quanto de procedimentos administrativos de um sistema extremamente
rígido e burocratizado que progressivamente oprime o contribuinte; ou como da
necessidade de utilização apropriada de recursos orçamentários na implementação
de políticas públicas; ou de eventuais – e cada vez menos frequentes -
dificuldades de arrecadação. Todos esses são problemas que, nos parece, dizem
muito mais respeito a ações de governo do que a disposições de Estado e que,
muito por isso, podem ser presentes em qualquer Estado do mundo, seja ela
democrático, ou não, de bem estar social, ou não.
A reforma do sistema tributário brasileiro é
algo que deve levar em consideração uma análise profunda dos modelos de estado
ao qual este deve servir, colocando-se, assim, em consonância efetiva com
mesmo, desde os seus princípios, passando por uma estruturação que considere
acima de tudo o princípio maior da capacidade contributiva do contribuinte.
Desde a sua tributação, como em todas as suas práticas, o Estado de bem estar
social deve garantir a progressiva redução das desigualdades econômicas e
sociais.
O estado de bem estar social, em suma, vê sua
implementação severamente comprometida desde o princípio por um sistema
tributário que carece de conformidade com os próprios ideais constitucionais
entabulados pela carta magna. Não se trata apenas de atualizar normas jurídicas
ou aprimorar a máquina administrativa tributária. É preciso uma mudança de
perspectiva e consequente de paradigmas. Ou melhor, é preciso apenas que se
oriente pelas perspectivas já expostas na Constituição de 1988 que, em síntese,
afirma que aquele que produz mais riquezas, deve contribuir mais do que aquele
que detém menos. A reforma do sistema tributário brasileiro é assim, antes de
mais nada, uma necessidade ideológica de uma necessária e cada mais premente
adequação teórica entre meios e fins.
[1] Mário
Bastos é Advogado militante, Mestrando em Filosofia pela UFBA, Pós graduado em
Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA, além de
Professor da Faculdade APOIO UNIFASS.
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