1 INTRODUÇÃO: 50 TONS DE CINZA
O best seller literário,
“50 tons de cinza”, da escritora britânica E. L. James chega ao cinema trazendo
ao imaginário popular fetiches sadomasoquistas que fomentam a libido e a
sexualidade na sociedade contemporânea, pois as aventuras eróticas de Christian
Grey e de Anastasia Steele tiraram suspiros de leitores por todo o mundo, além
de fomentar fantasias sexuais das mais variadas possíveis.
A obra literária aborda as
aventuras eróticas sadomasoquistas do casal, levando-se em conta o fato de que
o dominador estabelece perante a dominada dois contratos, um termo de
confidencialidade e um contrato que regula as práticas adotadas pelo casal,
estabelecendo direitos e deveres de ambos, estabelecendo, assim, a submissão
feminina aos devaneios eróticos do seu dominador.
O tema resvala diante do Direito
em várias vertentes haja vista o fato de desnudar o trato sexual e as relações
íntimas da privacidade do casal. Neste contexto, cabe apreciar a (im)
possibilidade de garantia da validade e eficácia destes contratos, levando-se em
conta o contexto do Direito Civil Brasileiro.
Não obstante à seara contratual,
pode ser cogitada que a empolgação diante das práticas sadomasoquistas, mesmo
que consensualmente praticada, possa ocasionar danos a uma das partes,
fato este que remete a situação ao apreço da responsabilização civil do
causador do dano, imputando-lhe o dever de indenizar a sua vítima.
Outrossim, diante da liberdade sexual e do terreno fecundo em que o
envolvimento é tratado, não se pode olvidar de, sob a ótica dos Princípios da
Dignidade da pessoa humana, da afetividade e da liberdade, apreciar tal
fenômeno diante do Direito de Família contemporâneo e dos novos arranjos
familiares.
Diante destes três aspectos é que
buscaremos apreciar o contexto da obra literária à luz do Direito Civil
Brasileiro neste pequeno ensaio.
2. 50 TONS DE CINZA E O DIREITO
CONTRATUAL BRASILEIRO
Os contornos da aventura erótica
dos personagens têm como ponto de partida a utilização de dois "contratos".
O primeiro, um termo de confidencialidade, que resguarda o segredo de toda a
relação do casal; e o segundo, um contrato que ajusta entre as partes direitos
e deveres, além de pormenorizar as regras dos jogos eróticos, as práticas
sexuais e os brinquedos e fetiches adotados na relação.
Partindo-se da premissa de que o
contrato é o negócio jurídico responsável por ajustar a
livre manifestação de vontade das partes de produzir, regulamentar,
modificar e extinguir direitos e obrigações, sendo estabelecido nos
limites da sua função social e da boa-fé, inicialmente poder-se-ia acatar o
termo de confidencialidade, que estabelece a obrigação de não fazer, ou seja, a
obrigação de não expor publicamente informações acerca da relação do casal, nem
tampouco qualquer episódio vivenciado pelos mesmos, sob pena de responsabilização
civil contratual.
Tratando-se agentes capazes,
objeto lícito, possível, determinado, sem forma prescrita em lei, nem tampouco
proibido na legislação brasileira (Art. 104 do CC-02), tal termo de
confidencialidade tem sua validade garantida, pois obsta apenas o
vazamento de informações privadas da relação, sendo possível, inclusive, o
estabelecimento de "cláusula penal" de natureza inibitória da
violação, bem como, sancionando aquele que descumprir os seus termos.
Não obstante a isso, no tocante à
disciplina das práticas sexuais, da disposição do próprio corpo e sobre a
submissão sexual às aventuras sadomasoquistas, podemos atestar a
impossibilidade de firmar um contrato formal com tal teor, haja vista o fato de
estar sendo violado os direitos da personalidade, no tocante à privacidade do
casal, sua integridade física e a honra, uma vez que tais direitos são
indisponíveis, não têm expressão econômica e, portanto, não são objeto das
obrigações contratuais, quais têm apenas como objeto as prestações de natureza
patrimoniais.
Uma vez que o contrato é fonte
geradora de obrigações, neste esteio, nos socorremos da lição
do Prof. Álvaro Vilaça Azevedo (2011, p.13), para esclarecer que:
(...)
obrigação é a relação jurídica transitória, de natureza econômica, pela
qual o devedor fica vinculado ao credor, devendo cumprir determinada prestação
pessoal, positiva ou negativa, cujo inadimplemento enseja a este executar o
patrimônio daquele para a satisfação do seu interesse. (grifos nossos)
Neste contexto, levando-se em
conta o fato de que a sexualidade e as práticas adotadas no
seu exercício por fazerem parte do universo da privacidade do
casal e integram o rol de direitos da personalidade, quais, a propósito, têm
entre suas características a extrapatrimonialidade, não se pode reconhecer uma
feição econômica que lhe permita configurar uma prestação obrigacional passiva
de regulação contratual, inclusive pela impossibilidade de, em caso de
descumprimento das "obrigações reguladas neste contrato", recorrer ao
Judiciário para satisfazer a pretensão do credor por meio de uma execução do
título extrajudicial, como uma simples obrigação de não fazer.
Não obstante a isso, a prática consensual
entre os mesmos encontra-se protegida pela autonomia da vontade, pela liberdade
sexual e pela privacidade do casal, de modo que as relações consentidas, nos
limites em que não infrinjam nenhum direito, nem causem danos (à saúde, vida ou
integridade física, por exemplo), podem ser tranquilamente adotada pelos
parceiros, sem qualquer interferência de instrumentos, institutos e
ferramentas do universo jurídico.
3.
RESPONSABILIDADE CIVIL E AS PRÁTICAS SADOMASOQUISTA
Não obstante o fato das relações
sadomasoquista poderem ser adotadas livremente por seus praticantes diante da
liberdade do exercício da sua sexualidade e de tal relação estar
protegida pelo fato da privacidade integrar uma das espécies
dos direitos da personalidade, não se pode olvidar o fato de que, na
empolgação do fetiche sexual, o ato praticado pode ocasionar danos a
uma das partes. Assim, no âmbito do Direito Civil, a relação passa
a desaguar na concepção da responsabilidade civil.
A responsabilidade civil é o
dever jurídico (secundário) de recompor um dano decorrente da violação de
um dever jurídico primário, no qual far-se-á necessário identificar quem ou o
que deu causa ao dano para eu haja imputação da responsabilidade de reparar ou
compensar a vítima.
Em outras palavras, a
responsabilidade civil nada mais é do que o ramo do Direito Civil que
estabelece a indenização como forma de reparar ou
compensar as vítimas (diretas ou indiretas) de
danos patrimoniais (material - dano emergente e ou lucro cessante) ou
extrapatrimoniais (moral e ou estético).
O alicerce da responsabilidade
civil é o princípio do neminem laedere, qual determina que a ninguém é
dado o direito de causar dano a outrem, portanto, ao causar um dano faz
surgir o dever de indenizar.
No âmbito das práticas
sadomasoquistas, o auge do prazer e da excitação pode fazer com que
os praticantes percam o controle e no ápice da relação transcendam limites
conscientes diante destas práticas sexuais, assim, pode acontecer que excessos
possam ocasionar danos à integridade física e até emocional de um dos
parceiros. Assim, caso sejam concretizados danos, estes reclamam reparação
civil.
A responsabilidade civil é
classificada em subjetiva e em objetiva. A responsabilidade subjetiva é aquela
aferida com base na culpa do sujeito, que agiu de forma negligente,
imperita, imprudente ou até de forma dolosa e que sua conduta, violando e
ou ofendendo um bem jurídico tutelado pelo direito, ocasionando um dano,
este deverá ser reparado ou compensado. Por sua vez, a responsabilidade
objetiva será atribuída, independentemente do apreço da culpa, nos casos
previstos em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo causador
do dano implicar em risco ao direito de outrem.
Aquele que na empolgação da
prática sadomasoquista numa conduta culposa (negligência, imprudência,
imperícia ou dolo), ofender a integridade física ou psicológica do seu
parceiro sexual e causar-lhe dano patrimonial ou
extrapatrimonial, terá o dever de indenizar a vítima, de modo a reparar ou
compensar o prejuízo suportado. Tal hipótese estará agasalhada pela
concepção da responsabilidade subjetiva, pois encontra alicerce no
fundamento da culpa de quem adotou a conduta ilícita (Art. 186 conjugado com o
Art. 927 do Código Civil Brasileiro).
Neste contexto, urge reconhecer
que as práticas sadomasoquistas podem causar danos à integridade física e
psíquica, quais podem reclamar uma indenização para reparar os prejuízos
materiais (despesas com medicamentos, tratamento psicológico, médico,
cirúrgico e hospitalar) e ou compensar os eventuais
danos extrapatrimoniais (ofensas à própria personalidade, que ocasionem
dores na alma e vitime a sua própria dignidade), permitindo o
estabelecimento de uma indenização direcionada a reparar ou compensar
danos morais e materiais correspondentes.
4. 50 TONS DE CINZA E O DIREITO
DE FAMÍLIA BRASILEIRO
Fora o aspecto sexual, não se
pode fechar as portas para a possibilidade desta aventura se transformar, para
além do lado carnal, em um envolvimento afetivo, pois o coração tem vida
própria que vitima a razão e alimenta um turbilhão de emoções que podem atrelar
o casal a projetos de vida comuns, que diante da pluralidade das entidades
familiares pode perfazer os requisitos essenciais à edificação familiar.
Neste contexto, pode surgir um
casamento, ou uma união estável, ou até colocar a sociedade em xeque-mate
diante de relações poliafetivas (fundadas no poliamor), ou na coexistência de
relações paralelas ou simultâneas que desafiam o judiciário e a tradição monogâmica,
quebrando tabus e desafiando novos paradigmas do comportamento afetivo e sexual
da Família contemporânea.
Há de se registrar que nas
últimas décadas a sociedade brasileira passou a conviver com infinitas
transformações culturais e sociais, quais reclamaram uma releitura do Direito,
de modo a proporcionar, numa sociedade justa, solidária e pluralizada, a valorização
da dignidade humana, da igualdade e da liberdade.
Neste contexto, sob a égide do
princípio da afetividade, a família brasileira foi pluralizada, repaginando o
universo jurídico, permitindo, sob a ótica constitucional, reconhecer para além
do casamento, outras entidades familiares como a união estável, família
monoparental, família homoafetiva, família extensa ou ampliada, família
recomposta ou reconstituída.
Respeitando-se a noção de
dignidade, a liberdade sexual e fundando a família contemporânea sobre o
alicerce do afeto, as relações concebidas como concubinárias, assim como
enlaces afetivos que transcendam ao limite do casal para albergar triângulos
amorosos ou mais sob o manto do poliamor vem desafiar a cultura conservadora.
Neste cenário multifacetário, globalizado e fundado na diversidade infinita de
hábitos, culturas, raças, sexo, religiões e cores, a pluralidade é a palavra de
ordem dos 50 tons de cinza do Direito de Família Contemporâneo.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Alvaro Villaça. Teoria Geral das
Obrigações e Responsabilidade Civil. Curso de Direito Civil. 12ª ed. São
Paulo: Atlas, 2011.
JAMES, E. L. Cinquenta tons de
cinza. Trad. Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2015.
[1]
Clever Jatobá é Advogado e Consultor Jurídico baiano, Mestre em
Família na Sociedade Contemporânea pela UCSal, Pós graduado em Direito do
Estado pelo JusPodivm e Faculdade Baiana de Direito, Professor da Faculdade Ruy
Barbosa (DeVray Brasil), por onde é Advogado e Supervisor do Balcão de Justiça
e Cidadania (Salvador-BA), Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdade
Apoio Unifass (Lauro de Freitas-BA).
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