terça-feira, 8 de março de 2016

DA PRORIEDADE

EQUÍVOCOS INTERPRETATIVOS NA SUA TUTELA
Por: Fernanda Carvalho de Matos[1]

No campo do Direito, há institutos que, a despeito do tempo e de inúmeras discussões sobre o tema, ainda parecem um entrave para advogadose para muitos julgadores. Dentre estes temas está a propriedade e a posse e em face de tais distorções, muitos institutos processuais ensejam entraves específicos, como, por exemplo, a ação reivindicatória e seus requisitos.

O artigo 1228 do CCB determina as prerrogativas dominiais (faculdades inerentes ao dominus do titular)  e determina que o proprietário pode usar, fruir, dispor e reivindicar o bem daquele que injustamente o possua ou detenha.

O final da redação do artigo 1228 encerra, pois, o cerne das dificuldades apontadas. Ao determinar que o titular pode reivindicar o bem daquele que injustamente o possua ou detenha, o legislador não projetou a série de dificuldades materiais e processuais decorrentes desta redação. Isso porque, a ausência de estudo aprofundado do campo de aplicabilidade das medidas faz com que o operador confunda institutos diversos: titularidade e medidas petitórias e posse e medidas possessórias.


Ao mencionar que o titular pode reivindicar o bem daquele que injustamente o possua ou detenha, o legislador se refere ao exercício do direito de sequela, uma das características dos direitos reais. Este poder de sequela instrumentaliza o jus persequendi, ou seja, direito (em sentido amplo) de perseguir a coisa sobre a qual recai a sua titularidade.

A faculdade persecutória confere ao proprietário poder de retomada do bem, de recuperação da coisa que esteja indevidamente em poder alheio. É um poder especifico dos titulares de direitos reais através de medidas petitórias (ínsitas a discussão que parte da titularidade). Em termos processuais, a legitimidade ativa é exclusiva dos titulares de direitos reais, sejam eles possuidores ou não.

O nó górdio acerca da ação reivindicatória não está na legitimidade ativa e sim na legitimidade passiva e cabimento da medida, interpretadassem muitos casos, de forma equivocada. Nesta ação o autor deve ser  o titular de direito real e o réu, na interpretação correta do artigo 1228, qualquer sujeito de direito que, de forma injustificada e indevida, estivesse com a coisa móvel, imóvel ou semovente, em seu poder.

À leitura  do artigo 1228 mencionado,  a expressão  “reivindicar de quem injustamente a possua ou detenha” poderia,de forma tranquila e sem mudança de conteúdo, ser substituída por “indevidamente o possua ou detenha”. Assim, qualquer um que não tenha causa jurídica para apoderar-se do bem, poderia compor o polo passivo da relação processual, em sede de reivindicatória.

Esta é a correta interpretação que gera, ainda, reflexos quanto ao ônus da prova. Sendo o autor titular de direito real e fazendo prova de sua titularidade, compete ao réu provar ter direito de estar com o bem. Esta prova poderia se dar por inúmeros artifícios e motivos (por ser um locatário, um legatário, por conflito de titularidade, por exemplo) e competiria ao juiz, analisar o direito do autor quanto ao mérito e, ainda, se presentes os requisitos do artigo 273 do CPC, antecipar os efeitos da tutela (ponderando-se ainda quanto institutos da surrectio supressio, na concessão da tutela antecipatória).

Acontece que, de forma enviesada, muitos intérpretes confundem o texto normativo e creem que, ao determinar que o reivindicante pode retomar o bem daquele que injustamente o possua ou detenha, o legislador está se referindo ao possuidor injusto, ou seja, compreendem que na ação reivindicatória, o polo passivo somente pode ser ocupado por aquele que seja possuidor injusto.

Urge ressaltar que tal interpretação é errada e reducionista e ocorre por confusão terminológica. Ser possuidor injusto refere-se a qualidade da posse. Possuir injustamente a res litigiosa, nos termos do artigo 1228 do CCB, é tê-la de forma indevida, maculando a titularidade do autor que, pela medida, pretende retoma-la. Assim sendo,  para ser réu  na reivindicatória não é necessário ser possuidor (podendo ser um detentor) ou, sendo possuidor, este pode ser justo ou injusto. A expressão “injustamente a possua” do diploma civilista não se refere a posse injusta.

Possuidor injusto é aquele que tem a sua posse viciada, maculada na origem em razão dos meios utilizados para possuir o bem. Numa visão rasa, possuidor injusto é aquele que, em razão da violência, clandestinidade ou precariedade, apodera-se de bem ou mantem-se com ele.  A posse se torna injusta em razão da violência (normalmente física), da clandestinidade (meio artificioso para apoderar-se do bem sem que o interessado perceba por estar inobservante, de forma oculta, velada, semelhante ao furto) ou precariedade (abuso da confiança; descumprimento de dever de restituição, semelhante a apropriação indébita). Ou seja, se o sujeito se apodera indevidamente do bem, mas sem utilizar violência, clandestinidade ou precariedade, a posse é justa, mesmo sendo ilícita ou indevida.

Pela interpretação errônea quanto cabimento da ação reivindicatória, somente os possuidores injustos poderiam ser réus na medida reipersecutória. Esta visão é distorcida e merece ser reformulada, porque em tal medida, de amplo espectro, possuidores justo e injustos, ou mesmo não possuidores, mas meros detentores, podem ocupar o polo passivo, sendo réus, bastando que não consigam justificar a sua vinculação jurídica com o bem. 

É preciso que não se confundam institutos diversos, titularidade e posse (que podem ou não coexistir) e ainda a detenção, para que se faça a adequação necessária dos conflitos existentes em torno do cenário do dano, evitando perda de tempo razoável em recursos para arguição de descabimento da medida, e, em situação mais grave, prejuízo aos diretamente envolvidos nas demandas: nossos clientes.




[1] Fernanda Carvalho de Matos é Advogada, sócia da Matos & Montenegro Advocacia. Pós graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá (2005). Professora de Direito Civil da Faculdade Apoio Unifass.

Um comentário:

  1. Excelente texto. Eis o antigo problema da adoção da interpretação literal como meio absoluto de compreensão de textos normativos. Parabéns Professora!

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