EQUÍVOCOS
INTERPRETATIVOS NA SUA TUTELA
Por:
Fernanda Carvalho de Matos[1]
No campo do Direito, há
institutos que, a despeito do tempo e de inúmeras discussões sobre o tema,
ainda parecem um entrave para advogadose para muitos julgadores. Dentre estes
temas está a propriedade e a posse e em face de tais distorções, muitos
institutos processuais ensejam entraves específicos, como, por exemplo, a ação
reivindicatória e seus requisitos.
O artigo 1228 do CCB
determina as prerrogativas dominiais (faculdades inerentes ao dominus do
titular) e determina que o proprietário
pode usar, fruir, dispor e reivindicar o bem daquele que injustamente o possua
ou detenha.
O final da redação do
artigo 1228 encerra, pois, o cerne das dificuldades apontadas. Ao determinar
que o titular pode reivindicar o bem daquele que injustamente o possua ou
detenha, o legislador não projetou a série de dificuldades materiais e
processuais decorrentes desta redação. Isso porque, a ausência de estudo
aprofundado do campo de aplicabilidade das medidas faz com que o operador confunda
institutos diversos: titularidade e medidas petitórias e posse e medidas
possessórias.
Ao mencionar que o
titular pode reivindicar o bem daquele que injustamente o possua ou detenha, o
legislador se refere ao exercício do direito de sequela, uma das características
dos direitos reais. Este poder de sequela instrumentaliza o jus persequendi, ou
seja, direito (em sentido amplo) de perseguir a coisa sobre a qual recai a sua
titularidade.
A faculdade
persecutória confere ao proprietário poder de retomada do bem, de recuperação
da coisa que esteja indevidamente em poder alheio. É um poder especifico dos
titulares de direitos reais através de medidas petitórias (ínsitas a discussão
que parte da titularidade). Em termos processuais, a legitimidade ativa é exclusiva
dos titulares de direitos reais, sejam eles possuidores ou não.
O nó górdio acerca da
ação reivindicatória não está na legitimidade ativa e sim na legitimidade
passiva e cabimento da medida, interpretadassem muitos casos, de forma
equivocada. Nesta ação o autor deve ser o titular de direito real e o réu, na
interpretação correta do artigo 1228, qualquer sujeito de direito que, de forma
injustificada e indevida, estivesse com a coisa móvel, imóvel ou semovente, em
seu poder.
À leitura do artigo 1228 mencionado, a expressão “reivindicar de quem injustamente a
possua ou detenha” poderia,de forma tranquila e sem mudança de conteúdo, ser
substituída por “indevidamente o possua ou detenha”. Assim, qualquer um
que não tenha causa jurídica para apoderar-se do bem, poderia compor o polo
passivo da relação processual, em sede de reivindicatória.
Esta é a correta
interpretação que gera, ainda, reflexos quanto ao ônus da prova. Sendo o autor
titular de direito real e fazendo prova de sua titularidade, compete ao réu
provar ter direito de estar com o bem. Esta prova poderia se dar por inúmeros
artifícios e motivos (por ser um locatário, um legatário, por conflito de
titularidade, por exemplo) e competiria ao juiz, analisar o direito do autor
quanto ao mérito e, ainda, se presentes os requisitos do artigo 273 do CPC, antecipar
os efeitos da tutela (ponderando-se ainda quanto institutos da surrectio e supressio, na concessão da tutela antecipatória).
Acontece que, de forma
enviesada, muitos intérpretes confundem o texto normativo e creem que, ao determinar que o reivindicante pode retomar o bem daquele que injustamente o possua ou detenha, o
legislador está se referindo ao possuidor injusto, ou seja, compreendem que na ação
reivindicatória, o polo passivo somente pode ser ocupado por aquele que seja
possuidor injusto.
Urge ressaltar que tal
interpretação é errada e reducionista e ocorre por confusão terminológica. Ser
possuidor injusto refere-se a qualidade da posse. Possuir injustamente a res litigiosa, nos termos do artigo 1228
do CCB, é tê-la de forma indevida, maculando a titularidade do autor que, pela
medida, pretende retoma-la. Assim sendo,
para ser réu na reivindicatória
não é necessário ser possuidor (podendo ser um detentor) ou, sendo possuidor,
este pode ser justo ou injusto. A expressão “injustamente a possua” do diploma
civilista não se refere a posse injusta.
Possuidor injusto é
aquele que tem a sua posse viciada, maculada na origem em razão dos meios utilizados
para possuir o bem. Numa visão rasa, possuidor injusto é aquele que, em razão
da violência, clandestinidade ou precariedade, apodera-se de bem ou mantem-se
com ele. A posse se torna injusta em
razão da violência (normalmente física), da clandestinidade (meio artificioso
para apoderar-se do bem sem que o interessado perceba por estar inobservante,
de forma oculta, velada, semelhante ao furto) ou precariedade (abuso da
confiança; descumprimento de dever de restituição, semelhante a apropriação
indébita). Ou seja, se o sujeito se apodera indevidamente do bem, mas sem
utilizar violência, clandestinidade ou precariedade, a posse é justa, mesmo
sendo ilícita ou indevida.
Pela interpretação
errônea quanto cabimento da ação reivindicatória, somente os possuidores
injustos poderiam ser réus na medida reipersecutória. Esta visão é distorcida e
merece ser reformulada, porque em tal medida, de amplo espectro, possuidores
justo e injustos, ou mesmo não possuidores, mas meros detentores, podem ocupar
o polo passivo, sendo réus, bastando que não consigam justificar a sua vinculação
jurídica com o bem.
É preciso que não se confundam institutos diversos, titularidade e posse (que podem ou não coexistir) e ainda a detenção, para que se faça a adequação necessária dos conflitos existentes em torno do cenário do dano, evitando perda de tempo razoável em recursos para arguição de descabimento da medida, e, em situação mais grave, prejuízo aos diretamente envolvidos nas demandas: nossos clientes.
[1] Fernanda Carvalho de Matos é Advogada, sócia da Matos &
Montenegro Advocacia. Pós graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade
Estácio de Sá (2005). Professora de Direito Civil da Faculdade Apoio Unifass.
Excelente texto. Eis o antigo problema da adoção da interpretação literal como meio absoluto de compreensão de textos normativos. Parabéns Professora!
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