Por: Mário Bastos[1]
A expressão
jurídica Direito Penal do Inimigo nunca foi tão claramente exposta por atos e
fatos como nos dias de hoje em nosso país.
Trata-se de
uma posição do judiciário e da promotoria, no exercício público do ius puniendi - o direito de punir do
Estado - que tem como fim principal a eficiência exemplar na aplicação da pena.
A princípio
essa parece ser uma ideia bastante sensata para as "pessoas de bem",
e diante da quimera da "impunidade" - haja vista sua evidente
seletividade social e econômica - razoável e sedutora.
Todavia, o
apelo do Direito Penal do inimigo tem mais de canto de sereia do que qualquer
outra coisa. Sua aparência sedutora revela um caráter destrutivo contra aquele
próprio que a ele se rende. Assim o é, pois, na sua concepção meramente
finalística de fazer valer o poder de punir do Estado, o Direito Penal do
inimigo efetivamente sacrifica a Justiça; instrumentaliza o monopólio do uso da
violência que lhe compete, efetivamente em uma ferramenta de abusos e agressões
à própria condição de cidadão.
Faz-se assim um
justiçamento, e não justiça. Uma espécie de vigilantismo travestido de
legalidade. Isso porquê ao colocar o ius
puniendi como objetivo final e prioridade, o Estado acaba ignorando,
atropelando e violando direitos fundamentais do cidadão. Ou seja, o Estado
rompe com o Cidadão o elo metafísico, e também racional, que serve de ponto de
origem e também lastro fundamental do Pacto.
Ora, dito em
outras palavras, o Estado Moderno, desde as primeiras constituições, existe
principalmente para preservar e garantir os direitos fundamentais do Cidadão.
Sem a manutenção dos mesmos, o Estado se esvazia em seu sentido tanto
deontológico quanto teleológico. E quando o próprio Estado contribui e opera
para a precarização desses direitos fundamentais, opondo uma violação direta
aos mesmos, não há termo mais apropriado que defina essa postura do que a mais
pura traição.
O dado
curioso que vem à tona nesse momento é que os atos cometidos pelo Estado
persecutório na condução da operação Lava-jato, nem de longe são isolados,
tampouco uma inovação. A recente desgraçada decisão do STF em na prática
aniquilar juridicamente o princípio da presunção de inocência é a grande prova
de que nosso Poder Judiciário e o Ministério Público há muito vêm trabalhando
em consonância no sentido de garantir acima de tudo o direito de punir do
Estado, ainda que isso implique em ignorar absolutamente direitos fundamentais.
De um ponto de
vista hermenêutico isso é ainda mais grave na medida em que procedimentalmente
dá-se através de magistrados que, sistematicamente, julgam politicamente, em
detrimento do devido julgamento com base em sólidos elementos racionais e
jurídicos; e assim o fazem para atender uma certa ideia de "justiça"
bastante peculiar que tem seus critérios formados não por princípios jurídicos
e aristotélicos, mas pela opinião pública pautada pelos grandes meios de
comunicação e pelo senso comum desprovido de qualquer caráter crítico.
Ainda no
sentido hermenêutico, muito mais grave essa atuação do judiciário quando o
mesmo se excede em suas funções e legisla positivamente, efetivamente opondo
novas interpretações a certos textos jurídicos que inovam em institutos que o
legislador competente não havia imaginado - como de dá no caso que levou o STF
a reconhecer a validade jurídica do instituto da Condução Coercitiva, sem
jamais ter se manifestado expressamente acerca da recepção do mesmo à luz da
Constituição de 88 - ou, ainda mais aterrador, quando efetivamente alteram o
código de processo penal, instituindo um novo tipo de prisão processual no
ordenamento jurídico brasileiro, através de uma mutação constitucional que ao
invés de ampliar direitos fundamentais, o restringe.
Trata-se do mais
teratológico exemplo de ativismo judicial perpetrado por uma Corte
Constitucional, de todos os tempos talvez.
Mas como dizia,
essas evidências que agora chegam aos mais altos círculos do poder - seja pelos
atos do STF, seja pela imposição do direito penal do inimigo na persecução de
grandes atores do cenário político brasileiro - são apenas aquelas que, por
conta das circunstâncias e de suas repercussões políticas, expuseram esse
quadro de persecução inquisitorial e medieval por parte do Estado.
A bem da
verdade já há algum tempo uma larga parcela da população brasileira vem sendo
submetida ao direito penal do inimigo. Trata-se de uma população que por estar
submetida a uma espécie de invisibilidade social, já vem desde sempre tendo
seus direitos fundamentais absolutamente ignorados. Todos sabem disso.
Principalmente para a população negra e de baixa renda, que reside na periferia
e nas favelas não se aplicam as mais elementares regras de garantias do cidadão
na persecução penal.
Desde a ação
policial, passando pela promotoria até a sentença judicial o objetivo é
prioritariamente o de punir a qualquer custo, e assim o devido processo legal
se acomoda para atender a esse interesse. E assim transformamos nosso sistema
prisional - que curiosamente o próprio STF já reconheceu como um Estado de
Coisas Inconstitucional - em uma manifestação viva do Inferno de Feliz
aniversário. E pouco se contribui para resolver o problema da violência. O
circo, contudo, que sacia - apenas por um instante - a sanha pelo assassínio da
quimera da impunidade ao menos monta-se com bastante destreza numa cooperação
brilhante entre mídia e aparato persecutório do Estado.
A
grande novidade agora, enfim, é que o direito penal do inimigo se estendeu para
aqueles que sempre gozaram de proteção perante este. Àqueles que eram os únicos
que ainda tinham uma réstia de direitos fundamentais garantidos - o que, a
propósito, ajuda até a explicar nossa estranha ideia de impunidade em um país
onde temos uma das polícias que mais mata no mundo. O direito penal no inimigo
agora se volta contra a classe política dominante - em um sentido
institucional, apenas - do Brasil: os políticos de Brasília.
Afirma-se assim
uma imagem canhestra de “isonomia material”, não estendendo a garantia dos
direitos fundamentais a todos, mas sim retirando-os de qualquer um
indistintamente, a depender da conveniência do ius puniendi.
Ou, melhor
dizendo, apenas uma possível isonomia na aplicação do direito penal do inimigo,
na medida em que, até momento, apenas uma determinada corrente de pensamento
político parece estar sujeita ao ímpeto finalísticos de certa persecução penal.
O que é ainda mais grave, se considerarmos que direitos políticos são estes
também direitos fundamentais estruturantes do estado de direitos, e a criminalização
do pensamento político é o princípio do fim da democracia.
Curiosamente,
nenhuma concepção do Direito Penal parece se conformar melhor à parcela do
mundo da vida de onde brota o pensamento do senso comum do brasileiro médio. A
própria evidência disso é a concepção de política que também a partir desta se
apresenta. A prova viva de que o pensamento de Carl Schmitt talvez não
estivesse assim tão equivocado, e que a tônica da política é mesmo melhor
definida pela relação relação amigo/inimigo.
[1] Mário Bastos é Advogado. Pós
graduado em Direito Tributário pela UFBA. Mestrando em Filosofia pela UFBA. Professor de Filosofia Geral e
Jurídica, bem como de Direito Constitucional da Faculdade Apoio Unifass.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito bom artigo!
ResponderExcluirMuito bom artigo!
ResponderExcluirNão me canso de ver seus artigos, são esclarecedores e ricos. Aborda temas que fogem do senso comum. Parabéns professor. Damu Majid.
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