domingo, 28 de fevereiro de 2016

JUSTIFICAR O INJUSTIFICÁVEL

Matando o principio da presunção de inocência

Por: Milton Silva Vasconcellos[1]

Por ocasião do julgamento do Habeas Corpus 126.292, em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal trouxe uma nova interpretação acerca da execução da pena, atingindo diretamente o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5, LVII, CF-88.

De acordo com a Suprema Corte, doravante, o início imediato  da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau, não ofende o citado princípio da presunção de inocência.

Em termos literais, se o duplo grau de jurisdição resta de fato cumprido, uma vez que há um segundo julgamento que confirma a sentença condenatória, o que se dizer acerca do princípio da presunção de Inocência?

Previsto no art. 5, inciso LVII, da CF-88, o princípio da presunção de inocência encontra-se disposto sob os seguintes termos:

Art. 5 [...]
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (BRASIL, 1988).

Trata-se de  um dos princípios basilares do Estado de Direito, concretizador da garantia processual penal que visa a tutela da liberdade pessoal, direito fundamental que prevalece diante do confronto ao jus Puniendi. 

Para o relator do caso, ministro Teori Zavascki, a possibilidade de eficácia do princípio da presunção de inocência exaure-se com a possibilidade de exame dos fatos o que se dá até a decisão de segunda instância, uma vez que deste ponto em diante os recursos tratam apenas de matéria de direito.

Nesse sentido pontua o relator, Ministro Teori Zavascki:

[...] até que seja prolatada a sentença penal, confirmada em segundo grau, deve-se presumir a inocência do réu. Mas, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ ou STF, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito. Ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”


Apesar de "tentador", sob o ponto de vista hermenêutico,  tal conclusão gera um absurdo hermenêutico: faz prevalecer uma norma ordinária (Lei n.º 7210/84 - Lei de Execução Penal)  ante um texto normativo constitucional (art. 5, LVII, CFRB), invertendo-se assim por completo a conhecida lógica de hierarquia das normas jurídicas proposta pela estrutura piramidal de Kelsen.

Ademais, o argumento do STF pauta-se numa necessidade de se ouvir o "clamor social" diante da sensação de impunidade gerado por processos longos e regidos por um complexo sistema recursal,  que terminaria por fazer do duplo grau de jurisdição um instrumento burocrático e permissivo que quase sempre permite a prescrição penal.

O argumento além de falacioso é "perigoso".

Afirma-se isso pois além de carecer de fundamentação racional a não aplicação da presunção de inocência às matérias de direito, bem como o condicionamento da compreensão jurídica a submissão da vontade popular é algo no mínimo surreal.

Deve-se destacar que, além do aspecto hierárquico, as normas constitucionais singularizam-se face seu conteúdo e linguagem, com reflexos diretos na interpretação destes textos.

Assim,  considerando seu conteúdo, o texto constitucional não se limita ao caráter prescritivo, existindo também normas de organização, dotadas de maior abstração e natureza principiológica,(justamente a hipótese do princípio da presunção de inocência) que, do ponto de vista hermenêutico, impõe ao intérprete uma conduta diferente haja vista que ele não pode simplesmente "descartar" uma norma e fazer prevalecer outra (como comumente ocorre entre as regras, regidas normalmente por lógica de subsunção), mas sim, respeitando a natureza principiológica da norma envolvida, mensurar, in concreto, por lógica de ponderação, alcançando assim um resultado hermenêutico mais adequado, haja visa que o princípio da presunção de inocência atrai - face sua natureza principiológica - uma linguagem peculiar, dotada de caráter mais abstrato e, por consequência menor densidade jurídica permitindo-se assim, um maior grau de discricionariedade ao intérprete.

Mas, ainda assim,  mesmo sob o manto dessa pretensa discricionariedade  negar eficácia ao princípio da presunção de inocência sob o argumento de tratar-se de matéria de direito ou da necessidade de se ouvir o "clamor social", assemelha-se na prática a uma estranha Hermenêutica que, se por um lado reage à impunidade, por outro, mata o princípio da presunção de inocência.

E entre a o risco de impunidade e a "morte" de um princípio constitucional, todos saem perdendo.


[1] Milton Silva Vasconcellos é Advogado baiano, Pós graduado em Direito do Estado pela FABAC. Professor de Direito Tributário, além da cadeira de Hermenêutica e Argumentação Jurídica da Faculdade Apoio UNIFASS (Lauro de Freitas-Ba). Autor do Livro "Noções de Hermenêutica Jurídica" (2015).

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